O enfrentamento às desigualdades e às injustiças sociais não tem sido priorizado
Por Lívia Miranda* e Demóstenes Moraes**
As duas maiores aglomerações urbanas da Paraíba, João Pessoa e Campina Grande, são reconhecidas por vários atributos e imagens amplamente divulgados por agentes públicos e privados: João Pessoa, a “cidade mais verde” e “onde o sol nasce primeiro”, e Campina Grande, a “cidade criativa” e do “maior São João do mundo”.
No entanto, essas imagens não revelam que tais cidades e seus entornos são marcados por desigualdades, injustiças sociais e pela permanência da pobreza extrema que afetam quase metade das pessoas que lá vivem. Em 2024, para enfrentar tais desigualdades, será fundamental disputar as propostas das agendas públicas municipais no contexto de eleições. Mas, antes, é preciso reconhecer como essas desigualdades se expressam nas cidades.
As desigualdades e a crise urbana
Como denuncia o boletim Desigualdades na Metrópole, a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a região metropolitana de João Pessoa, no 2º trimestre de 2023, apresentou a segunda maior desigualdade de renda entre as regiões metropolitanas do Brasil. Nessa aglomeração, os 10% mais ricos acumularam um rendimento médio quase 100 vezes maior do que o rendimento médio dos 40% mais pobres. Além disso, mais de 35% das pessoas viviam em domicílios com rendimento per capita de até ¼ do salário mínimo.
Em Campina Grande, pelos dados do Censo Demográfico de 2010, os domicílios com rendimento nominal per capita até 1/2 salário mínimo chegavam a 53,67% na sua região imediata.
As desigualdades de renda, mesmo sem todos os dados disponíveis do Censo de 2022, devem ser maiores para as populações pretas e pardas, considerando os estudos passados. Essas populações predominam nas duas regiões metropolitanas, cerca de 70% da população de João Pessoa e um pouco mais de 60% em Campina Grande.
A expectativa para os resultados do novo censo demográfico, ainda não divulgados integralmente, é que as condições relativas as desigualdades não tenham melhorado. Até porque o enfrentamento às desigualdades e às injustiças sociais não tem sido priorizado pelos governos municipais, com gestões mais próximas de perspectivas conservadoras e autoritárias e contaminadas pelo ideário neoliberal. As prioridades desses governos para os investimentos públicos têm se concentrado em setores das cidades que são de interesse de agentes econômicos mais poderosos. Tais prioridades são efetivadas em detrimento das necessidades dos assentamentos precários, onde está concentrada a população em situação de pobreza econômica e com maior vulnerabilidade social.
A combinação de uma urbanização incompleta e precária em partes das cidades, das mudanças climáticas e a ausência de políticas urbanas redistributivas e inclusivas tem agravado as condições de vida e diminuído as oportunidades de reprodução e até de sobrevivência para parte expressiva das populações das aglomerações de João Pessoa e Campina Grande.
É importante registrar, ainda, que os territórios onde está concentrada a população indígena, majoritariamente no entorno metropolitano de João Pessoa, estão sob pressão, uma vez que a população não indígena tem crescido em uma proporção quatro vezes maior que a população indígena.
As posturas predominantes dos governos municipais, em sua maioria, também têm criado barreiras à participação social ampla das pessoas nas discussões e decisões sobre as questões e recursos públicos nas cidades e regiões, principalmente daquelas em situação de vulnerabilidade social. Mas onde vive a maioria dessas pessoas?
Quais são os territórios prioritários?
Nas regiões metropolitanas de João Pessoa e Campina Grande, mesmo nas áreas onde a paisagem e os dados revelam as melhores condições de vida, há assentamentos populares precários que são a principal alternativa que a população excluída socialmente encontra para permanecer na cidade. Em sua maioria, esses assentamentos estão situados nas margens dos rios e encostas íngremes e se caracterizam pela carência de serviços públicos, padrão urbanístico irregular, habitações precárias, entre outras condições.
O abandono histórico e o tratamento discriminatório e violento promovido por agentes públicos marcam esses territórios populares e as pessoas que ali vivem, a maioria negra e em situação de pobreza econômica. As intervenções públicas para a melhoria das condições de vida de seus moradores, quando ocorreram, foram insuficientes.
Segundo o IBGE (2020), na aglomeração de João Pessoa quase 50 mil domicílios estão localizados em assentamentos populares ou periféricos. A maior proporção desses domicílios (um em cada quatro) se localizam nos municípios de Cabedelo, Bayeux e Conde. Em Bayeux, mais de 1/3 dos domicílios nesse município são precários (33,15%), que é a situação mais grave da Paraíba. Na capital João Pessoa, são aproximadamente 34 mil domicílios que estão situados em 103 assentamentos.
Estudos, ainda em andamento, realizados pelo Observatório das Metrópoles – Paraíba, identificaram 165 assentamentos em João Pessoa. Desses, somente 74 foram oficialmente reconhecidos pelo poder público municipal como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) no Plano Diretor, recentemente revisado.
Na Região Metropolitana de Campina Grande, os aglomerados precários estão localizados de forma concentrada no município sede. Foram reconhecidos pelo IBGE, 8,5 mil domicílios, situados em 22 assentamentos. Outros estudos têm reconhecido que as sedes de municípios dessa região como, Queimadas, Lagoa Seca, Puxinanã, Massaranduba evidenciam baixíssimas condições de vida, precariedade ou ausência de infraestruturas e serviços urbanos.
Em Campina Grande, a partir dos estudos do Observatório das Metrópoles – Paraíba, já foram identificados 45 assentamentos, dos quais, somente 17 foram delimitados como ZEIS em 2009. Assim, os dados demonstram a subnotificação das desigualdades no território.
Além das condições territoriais, a situação de precariedade também se expressa nas poucas oportunidades para que essas pessoas possam desenvolver as suas capacidades (acesso pleno à educação, cultura, lazer, saúde, alimentação, trabalho digno etc.). Existe, por exemplo., uma significativa conexão entre os níveis de pobreza extrema e a baixa alfabetização. Na Região Metropolitana de João Pessoa, quase uma em cada 10 pessoas de 15 anos ou mais de idade são analfabetos (8%), segundo os dados da PNAD C (2022). Em Campina Grande, 14,6% das pessoas com 25 anos ou mais de idade, não sabiam ler nem escrever.
É imprescindível que os assentamentos populares e seus moradores sejam priorizados a partir de políticas públicas territoriais redistributivas, inclusivas e integradas. Mas antes, estes assentamentos precisam ser reconhecidos em sua complexidade, nas relações com a cidade e a partir das identidades, práticas, forças, potenciais e iniciativas de seus habitantes. Tais reconhecimentos são fundamentais para a superação de desigualdades e injustiças socioterritoriais, tendo seus moradores como protagonistas das transformações necessárias e emancipadoras.
O quadro de desigualdades e injustiças socioterritoriais que caracteriza os municípios que integram as aglomerações de João Pessoa e Campina Grande é agravado ainda mais pela quase inexistente cooperação intermunicipal na promoção de serviços de interesses comuns metropolitanos e para o enfrentamento das precárias e desiguais ofertas de equipamentos e serviços urbanos. As eleições serão municipais, mas as questões e problemas são comuns a vários municípios e requerem abordagens territoriais sistêmicas e integradas.
Para o enfrentamento das desigualdades e injustiças socioterritoriais a partir de 2024
É preciso construir, urgentemente, alternativas de políticas públicas para superar as barreiras históricas e estruturais que impedem que parte expressiva das populações de João Pessoa e Campina Grande e seus entornos tenha acesso a recursos, serviços e oportunidades fundamentais à reprodução da vida e social com dignidade.
As desigualdades e injustiças socioterritoriais que caracterizam esses municípios metropolitanos apontam para a necessidade urgente de priorizar as políticas urbanas redistributivas e inclusivas. Todavia, as tendências em âmbito municipal têm apontado para ações e intervenções públicas cada vez mais voltadas para os interesses de agentes com maior poder econômico e político em detrimento dos interesses social e ambiental amplos e ainda mais das necessidades e desejos dos grupos sociais vulnerabilizados.
Uma prioridade inadiável para os futuros prefeitos e parlamentares municipais deve ser a promoção de investimentos públicos para a inclusão social associados à melhoria das condições nos assentamentos populares, onde vive a maior parte da população em situação de pobreza econômica. Mas, para que essa agenda pública seja proposta no âmbito das eleições municipais de 2024 e depois implementada a partir de 2025, mesmo para os governos formados por coalizões mais progressistas, é fundamental a mobilização e incidência sociopolítica contínuas de movimentos sociais, coletivos, ativistas e articulações por direitos humanos e sociais.
Para além dos sujeitos sociais mais organizados, é imprescindível que os mais afetados pelas desigualdades, segregações e exclusões socioterritoriais tenham oportunidades para se reconhecerem, a partir de uma visão crítica sobre as realidades injustas que lhes foram impostas, como sujeitos de direitos e como imprescindíveis decisores sobre os investimentos públicos nas cidades para que seja possível enfrentar as desigualdades que lhes impedem o pleno exercício da cidadania. Só com a sua participação ampla na construção das agendas públicas municipais, já a partir das eleições municipais de 2024, será possível a transformação da vida urbana para a garantia do direito à cidade nas aglomerações de João Pessoa e Campina Grande.
Lívia Miranda* é professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFCG e das Pós-graduações em Desenvolvimento Urbano e Geografia (UFPE) e Desenvolvimento Regional (UEPB); pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles e da Coordenação do FNRU; e diretora da Associação Nacional de Pós-graduação e Planejamento Urbano - ANPUR.
Demóstenes Moraes** é professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFCG; pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles; integrante da Coordenação do FNRU e dos Conselhos do BrCidades e do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
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Edição: Carolina Ferreira