A festa lembra que a cidade não é só espaço de passagem
Por Bruna Almeida*
Através do Decreto 4813/24, a prefeitura de Campina Grande proibiu a circulação de festejos carnavalescos durante o período do carnaval, de 8 a 13 de fevereiro, reservando bairros inteiros e espaços públicos para eventos religiosos. Assim, permitindo apenas os festejos em áreas periféricas ou privadas. É um ato inconstitucional e autoritário, que simboliza a desigualdade em que são tratados diferentes grupos na cidade.
No discurso, fala-se que a intenção seria harmonizar os interesses de todos os públicos e ordenar a realização dos eventos. Na realidade, vê-se a tentativa de segregar e até mesmo eliminar determinado tipo de manifestação popular. Após pressão popular, com protestos e repercussão nas redes sociais e jornais, o decreto foi revogado.
Não é de hoje o sucateamento, falta de investimentos e tentativa de apagamento do carnaval tradicional em Campina Grande. Mas é uma história que também se repete em outras cidades. Parte da sociedade brasileira tem uma percepção da festa como vagabundagem, elemento de alienação. Há um preconceito e uma falta de percepção de que a festa é um processo de construção coletiva de pertencimento da vida em comum.
Além disso, a economia criativa do Carnaval sustenta muita gente não só durante a festa, então acaba sendo também uma forma de combate à pobreza. Essa dupla dimensão é essencial para entender a relevância do Carnaval para o país.
A gente vive numa sociedade da individualização, dos corpos domesticados dentro da lógica do trabalho, do consumo exacerbado. Tudo isso nos distancia daquilo que nos constitui como comunidade. E o Carnaval é um espaço de reconstrução desse sentido, um espaço de celebração coletiva. Escolas de samba, ala ursas, bois, tribos e maracatus são instituições de identidades comunitárias e construções de sociabilidades, que reavivam laços e criam redes de proteção social.
Além disso, a festa lembra que a cidade não é só espaço de passagem, alimenta os vínculos afetivos com os lugares, reforça o sentimento de pertencimento, identificação e bem estar com a cidade. A dimensão da vida nas ruas restaura a ideia de coletividade, de protagonismo, de autonomia de personagens que o Brasil oficial tenta eliminar o tempo inteiro, ou então esconder ou domesticar. O que está acontecendo é um esvaziamento da rua como ponto de encontro em nome de uma rua domesticada a partir da lógica do capital. Quando você tira o carnaval de rua de cena nesse contexto, há um esvaziamento simbólico da rua como instância de construção da vida na cidade e reforça o preconceito e a desigualdade.
Como bem destaca Luiz Antônio Simas, a história do carnaval é uma história de disputas. Num certo momento, sobretudo no pós-abolição, até hoje, se vê uma elite que defende um modelo de carnaval elitista, de salão, e do outro lado tem-se o modelo de carnaval ligado à sociabilidade e espontaneidade das ruas. Além disso, sua relação com o poder público sempre passou pela esfera da repressão e do ataque às suas manifestações; ou a da ordem e da disciplina, em uma tentativa de domesticar o Carnaval. Há também uma certa mercantilização da festa, que tenta padronizá-la.
Durante o Carnaval há um processo de reação a esse tipo de coisa. As diversas maneiras de praticar a cidade, a rua e o corpo se manifestam através da proliferação de pequenos blocos; da ocupação de outros espaços urbanos, que não aqueles destinados pelo poder público. O Carnaval que se manifesta nas periferias opera numa dimensão reativa a esse Carnaval das grandes multidões, do evento ditado pela lógica da circulação de capital. O Carnaval de rua é um evento fundamentado em tradição, história, vivência e cultura. Trata-se de uma festa política que vai contra a ordem de disciplinar o espaço público. São essas ocupações e festas que contribuem para a identidade cultural de uma cidade.
O Brasil, na maior parte do tempo, foi projetado a partir de uma ideia de exclusão e de concentração de riqueza, excluindo grande parte da população dos direitos básicos de cidadania. Ao mesmo tempo, estes que foram inferiorizados pela experiência histórica da exclusão foram construindo sentidos de vida, reinventando a existência como experiência de soberania, alegria e liberdade. O carnaval é um exemplo, porque chega ao Brasil como uma festa europeia trazida pela colonização portuguesa, mas aqui adquire características populares, sobretudo pelos cruzamentos com as diversas africanidades.
É dessa forma que, ao longo da história, o povo brasileiro dribla a exclusão e exerce o direito que cada um tem de estar nas ruas e no mundo. O período do carnaval é o momento em que pessoas socialmente marginalizadas ganham momentânea notoriedade e protagonismo. O Carnaval aponta o tipo de rua, de cidade e de gente que queremos, o tipo de relação que queremos estabelecer com o outro, dentro de um espírito de coletividade.
E esse Brasil diverso, transgressor, inventor, contestador e plural é o Brasil que almejamos dentro de uma perspectiva democrática. É uma festa que enseja o respeito à divergência, à diferença, à multiplicidade de experiências. O Carnaval nos coloca diante da necessidade de conviver com o outro, com a alteridade como elemento fundamental da construção coletiva de vida.
Ao mesmo tempo em que os detentores do poder vêm investindo progressivamente no fim do Carnaval campinense, os populares continuam tecendo micropolíticas que dão sentido e visibilidade à Campina que preserva esse valioso patrimônio cultural popular e a liberdade de expressão. Os populares continuam honrando sua memória da festa e da resistência, ocupando as ruas da cidade com outras Campinas possíveis. Essa prática cultural popular foi invisibilizada pelos discursos oficiais e pelas políticas públicas. A luta pela sua permanência em Campina Grande é uma luta pelo direito à cidade.
A festa nunca foi um componente dissociado à luta. Carnaval é a festa da ancestralidade. E essas festas vão além da resistência. O Carnaval coloca a cidade a serviço das pessoas. Livre de abadás, cordas ou grades, é um movimento predominantemente político, de conquista do espaço urbano. A política não se faz apenas nas urnas, é no cotidiano e é nele que está a cultura. A luta tem que estar na rua, no cotidiano, nas instâncias coletivas.
A reinvenção do Brasil, a transgressão necessária virá das margens do Brasil oficial. A solução passa pelo protagonismo dos próprios agentes de cultura, dos agentes de território. Além disso, a participação da sociedade civil na construção de políticas públicas voltadas à cultura é imprescindível para a valorização desse setor tão importante para a história e a identidade de um povo. Para a construção de uma agenda pública municipal, não se pode deixar de fora as dezenas de grupos de cultura popular atuantes na cidade. Os gestores municipais devem incentivar sua existência e investir nas diversas expressões populares que fortalecem o exercício do direito à cidade nas camadas mais afetadas pela segregação.
O carnaval tradição dos bois, ala ursas, escolas de samba, maracatus é também o carnaval da paz. Carnaval é o direito de ir e vir nas ruas, é o direito de reunião, é direito à cultura, é direito à cidade.
“Carnaval tem seus direitos, quem não pode com ele não se meta!”
*Bruna Almeida é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Campina Grande e pesquisadora do Observatório das Metrópoles - Núcleo Paraíba.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
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Edição: Carolina Ferreira