[Elas] escreveram e fundaram escolas para combater o analfabetismo e elevar a estima feminina
Por Santuza Mônica de França P. da Fonseca*
As relações de poder estabelecidas pelo modelo de família tradicional brasileira, consolidadas por um modelo social, político e educacional conservador e hegemônico, extremamente heteronormativo, podem ajudar a refletir sobre a posição das mulheres nos tempos contemporâneos. Não obstante, podemos vislumbrar algumas iniciativas que se opuseram a esse status quo em outros tempos por mulheres pioneiras e que se destacaram no combate às questões de desigualdades, racismo, sexismo e educação.
No tempo em que as notícias chegam de forma instantânea pela mídia, podemos afirmar que o feminicídio é hoje escancarado nos noticiários, no entanto, nem sempre recebe punições na mesma velocidade ou tem sido evitado pelas instituições de segurança e pelas leis de proteção às mulheres. Antes − e continuadamente − persistem os preconceitos e crimes contra as mulheres de forma atroz.
Dados recentes (Folha de São Paulo, 7 de março de 2024)¹ apontam que desde março de 2015 até 2023, quando a Lei 13.104 determinou o feminicídio como um homicídio qualificado e o incluiu no rol dos crimes hediondos, aconteceram mais de 10 mil crimes de feminicídio no país e a região Centro-Oeste teve a maior taxa para cada 100 mil habitantes, seguida da região norte. Esse levantamento, segundo a mesma fonte (Folha de São Paulo), foi realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e foram considerados pela Polícia os registros mediante os boletins de ocorrência nas Delegacias estaduais e do Distrito Federal, o que supõe subnotificações pois nem sempre os crimes domésticos são denunciados.
Mesmo que as mulheres representem 51,5% da população brasileira² (IBGE, 2022), seus direitos são vilipendiados, seus corpos são desrespeitados, suas vozes soam como “um grito no deserto” e, em muitas sociedades, a sua existência tem sido negada.
Na aposta pela educação como uma das formas eficazes de combatermos a violência contra as mulheres, precisamos rememorar algumas iniciativas de pioneiras no enfrentamento às desigualdades e à violência, apesar de terem vivido uma no século XIX e outra no século XX as mesmas situações que hoje estão presentes na vida de muitas mulheres.
É oportuna a lembrança da vida e iniciativas de duas mulheres que no seu tempo e, contrariando regras do patriarcado em que se viviam, se destacaram e marcaram suas digitais na história de luta pela igualdade das mulheres brasileiras e, principalmente, pelo direito à educação. Seus nomes são: Dionísia Gonçalves Pinto, conhecida pelo pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta, ou simplesmente Nísia Floresta, nascida no Rio Grande do Norte em 1810, filha de pais brancos e considerada como a primeira feminista brasileira e que lutou pelo direito da mulher ser escolarizada nos mesmos moldes educacionais dos homens.
Outra brasileira pioneira nesta luta, que merece ser destacada, é Antonieta de Barros, nascida no estado de Santa Catarina em 1901, primeira parlamentar negra, eleita em 1934 como deputada estadual catarinense. Era filha de escrava liberta, Catarina Waltrick e Rodolfo de Barros, nascida na cidade de Desterro, como era chamada a capital, hoje denominada Florianópolis.
Nísia Floresta atuou como educadora e escritora numa época de intensa repressão do Brasil colonial à dominação da Corte portuguesa e numa sociedade em que mulheres deviam ser educadas para viverem à sombra de seus esposos e no cuidado com a casa e os filhos. Casou-se muito cedo, aos 13 anos de idade, contudo logo abandonou o marido, contraindo nova relação conjugal com um jovem estudante de Direito, cujo nome era Manuel Augusto de Faria Rocha, na cidade de Olinda/PE, com quem teve dois filhos. De Olinda se transfere para o Rio Grande do Sul, onde fica viúva. Quando estoura a Revolução Farroupilha, Nísia se transfere para o Rio de Janeiro e lá funda uma escola para meninas, numa oposição ao modelo escolar da época que era voltado predominantemente à educação masculina.
A Escola Augusta, fundada por Nísia Floresta, faz germinar a semente de uma educação feminista, mais igualitária, a qual defende que as mulheres devem ter acesso à ciência através dos conteúdos escolares igualmente aos homens e não apenas às atividades que irá desenvolver no ambiente doméstico. A importância da filosofia de Nísia Floresta ocorre neste aspecto, muito embora sua concepção de educação não tenha rompido com as normas sociais machistas, mas inaugurou um novo conceito de educação para a menina/mulher daqueles longínquos anos oitocentistas.
Sua atuação como uma das primeiras escritoras a publicar na grande imprensa, ao abordar temas polêmicos para aquela época, a situam como persona non grata no Império. Migra, então, para a Europa onde produziu uma vasta obra literária que fortaleceu seus ideais de militar pelo direito da mulher à educação. Nísia Floresta morreu na França, em 1885, na cidade de Bonsecours, na Normandia e seus restos mortais vieram para o Brasil em 1954, onde repousam em Papary, mesmo local do seu nascimento.
Antonieta de Barros deve ser lembrada pela luta que abraçou pela alfabetização no seu estado, Santa Catarina, cujos índices de analfabetismo da ordem de 65%, principalmente entre os negros, eram alarmantes na sua época. Seu pai faleceu muito cedo e sua mãe lavava roupas para sustentar os três filhos e trabalhou como doméstica para uma família de importante clã político.
Antonieta alfabetizou-se aos 5 anos e, com 17 anos, ingressou na Escola Normal Catarinense, hoje Instituto Estadual de Educação. Aos 21 anos, fundou o Curso Particular Antonieta de Barros voltado à alfabetização, instituição que dirigiu até sua morte. Lecionou como professora de Português e Literatura e, para além do magistério, atuou como escritora, jornalista e na vida parlamentar. Seus inúmeros textos jornalísticos eram escritos sob pseudônimos e versavam sobre a condição feminina e os preconceitos raciais, dentro de um contexto em que as mulheres não possuíam direito de se expressar e nem tampouco direito ao voto.
Fundou e dirigiu o Jornal “A Semana”, entre os anos de 1922 a 1927 em Florianópolis. Em 1930, dirigiu o periódico “Vida Ilhoa”, na mesma cidade e, em 1937, escreveu o livro Farrapo de Ideias sob o pseudônimo de Maria da Ilha. Seus temas enfocaram a valorização da pessoa negra, as diferenças sociais, os papéis sexuais e a universalização da educação, inclusive o acesso da mulher no ensino superior, tendo em vista que o máximo que a mulher tinha direito naquela época era ao curso de normalistas (Magistério).
Antonieta de Barros elegeu-se deputada apenas dois anos depois do voto feminino ser permitido no país. Foi a primeira mulher de Santa Catarina, em 1934 “[...] a se eleger para uma cadeira na Assembleia Legislativa. Enquanto presidiu trabalhos no Congresso Legislativo dedicou-se a propostas relacionadas ao magistério, entre elas a que institui o dia 15 de outubro como o Dia do Professor”³. Seu falecimento ocorreu prematuramente em 28 de março de 1952, contudo a lembrança de seus feitos tem sido resgatada nos tempos atuais, após ter ficado no esquecimento por várias décadas.
Recentemente, o Presidente Lula juntamente com as ministras Margareth Menezes (Cultura) e Anielle Franco (Igualdade Racial), sancionaram uma lei que incluiu o nome de Antonieta de Barros no livro Heróis e Heroínas da Pátria (Portal UOL, 11 de julho de 2023) ⁴.
Ao conhecermos, mesmo que brevemente, as histórias de vida e luta de Nísia Floresta e Antonieta de Barros, é possível entendermos o protagonismo pioneiro das duas mulheres e suas lutas em prol da emancipação feminina através da educação. Ambas, em tempos diferentes, no interstício de quase 100 anos entre os seus nascimentos, marcaram seus tempos com seus projetos de vida. Escreveram e fundaram escolas para combater o analfabetismo e elevar a estima feminina. Suas militâncias em prol da condição feminina, do enfrentamento à educação precária e das relações desiguais entre homens e mulheres estabelecidas pelo patriarcado e pelas oligarquias não romperam a ordem social de suas épocas, mas provocaram muitas reflexões que incomodaram as elites e denunciaram os desmandos políticos que sempre posicionaram a mulher em situação inferiorizada sem reconhecer suas potencialidades no seio da sociedade.
Notas
1 Brasil Registra mais de 10 mil casos de feminicídio em 9 anos, aponta levantamento. Acesso em: 08 mar 2024
2 Censo Demográfico 2022. Acesso em: 08 mar 2024.
3 Dados biográficos: Antonieta de Barros. Acesso em: 10 mar 2024.
4 Antonieta de Barros: Quem foi a primeira mulher negra a ser eleita no país?. Acesso em: 10 mar 2024.
Para saber mais
BARROS, Antonieta de. Farrapos de Ideias. 2.ed. Florianópolis: SCP, 1971. (crônicas)
CASTRO, Luciana Martins. A contribuição de Nísia Floresta para a educação feminina: pioneirismo no Rio de Janeiro oitocentista. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Volume 7, número 10, dezembro de 2010. Dossiê História e Educação. p. 237-256.
ROMÃO, Jeruse. Antonieta de Barros: professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil. Florianópolis: Ed. Cais, 2021.
*Santuza Mônica de França P. da Fonseca é professora da UFPB/Centro de Educação/Departamento de Habilitações Pedagógicas. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Especial e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Questões Sociais na Escola.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
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Edição: Carolina Ferreira