a favor de quem atuam os representantes do povo?
Por Alexandre Sabino do Nascimento* e Andréa L. Porto Sales**
"Mas é que lá em cima
Lá na beira da piscina
Olhando os simples mortais
Das alturas fazem escrituras
E não me perguntam se é pouco ou demais".
(Judas – Raul Seixas)
Neste artigo examinaremos os recentes fatos ligados aos processos de planejamento e gestão urbana de João Pessoa, levantando questões sobre o verdadeiro controle e participação nas decisões políticas e de planejamento que moldam a nossa cidade. No contexto de um ano eleitoral (eleições para prefeito e vereadores), é importante fazer um balanço para identificar as batalhas perdidas na defesa de uma cidade mais democrática, menos desigual e injusta social e ambientalmente.
Para tanto, destacamos, especialmente, o processo contraditório de aprovação do novo Plano Diretor da cidade, Lei Complementar nº 164/2024, votado em 21 de dezembro de 2023. A votação recente representa, em nossa análise, um exemplo típico de manobras urbanísticas e jurídicas coordenadas por diversos agentes públicos e privados, que veem a cidade como uma fonte de lucro e não como um espaço para qualidade de vida e de exercício pleno dos direitos constitucionais dos cidadãos.
Este breve balanço visa não apenas lamentar as derrotas passadas no que se refere à política urbana, mas também lançar questões pertinentes acerca do processo, tais como: quem detém o poder em João Pessoa? Quem deveria liderar as reflexões, as propostas, as decisões e o monitoramento da política urbana? Estamos construindo uma cidade para as pessoas ou para o lucro?
Reconhecemos que a participação e controle sociais na política urbana podem parecer batalhas perdidas. No entanto, inspirados na defesa de Slavoj Žižek sobre a luta em prol das "causas perdidas", entendemos que a análise dessas derrotas, durante um ano eleitoral, pode proporcionar uma oportunidade para avaliar os obstáculos à construção de uma democracia substantiva e para seguir em busca de uma cidade mais justa e equitativa.
Essa luta é necessária pois, como Chico Science expressou em uma de suas canções, "a cidade se apresenta centro das ambições". A afirmação permanece relevante até os dias atuais, uma vez que o processo de produção e apropriação dos espaços urbanos continua sendo alvo de intensas lutas e disputas. Tal dinâmica ocorre apesar dos avanços, nas últimas décadas, no estabelecimento de marcos legais participativos para o planejamento e gestão urbana. Assim, fica evidente que os interesses privados, bem representados nas gestões municipais em todo o Brasil, têm mantido um forte protagonismo na condução da política urbana.
Estão envolvidos nesse processo uma variedade de agentes sociais e capitais, incluindo o setor imobiliário, as empresas de transporte público ávidas por lucros, o setor da construção civil e consultorias que, cada vez mais, têm desempenhado um papel crescente no planejamento urbano, representando uma tendência preocupante de terceirização e privatização desse processo. Fato que não resulta apenas em custos adicionais para os cofres públicos, mas também limita significativamente a participação da sociedade nas decisões relativas ao planejamento e gestão da cidade.
No que diz respeito à gestão de João Pessoa, destacamos o papel de agentes que transitam entre o setor privado e público, especialmente no contexto da construção civil e do mercado imobiliário, ocupando cargos de alto poder e controle, como é o caso do tem ocorrido na Secretaria de Planejamento do município. Este órgão exerce grande influência sobre a produção do espaço urbano, controlando recursos financeiros, patrimônio, informações privilegiadas e direcionando o crescimento da cidade.
Um exemplo dessa influência é o controle do banco de terras públicas de João Pessoa. Segundo dados do Consórcio João Pessoa Sustentável (2021), a cidade possui uma quantidade significativa de lotes vazios, os quais poderiam ser destinados a empreendimentos de habitação de interesse social ou criação de novas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Contudo, a partir de pesquisas realizadas no âmbito da UFPB, verificamos a supressão de 20 ZEIS do atual Plano Diretor. Tal supressão pode desencadear processos de remoções forçadas (reassentamentos e realocações) que representam a negação do Direito à Cidade e à moradia digna, além de ampliar a segregação na cidade.
Essas ações vão de encontro ao Estatuto da Cidade (Lei Nº 10.257/2001). A referida lei preconiza o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo e do equilíbrio ambiental. No entanto, observa-se uma discrepância entre esses princípios e a realidade em João Pessoa, onde a especulação imobiliária e a falta de moradia digna estão em ascensão. Para exemplificar tal contradição, verificamos que o número de lotes vazios em João Pessoa (45.773 lotes) é similar ao número de famílias a procura de moradia na cidade 45 mil famílias, conforme informações da Secretaria Municipal de Habitação (SEMHAB), para o ano de 2021 (CONSÓRCIO JOÃO PESSOA SUSTENTÁVEL, 2021). Diante disso, perguntamos: onde está a prioridade do direito humano e social à moradia na gestão urbana?
Consideramos que esse quadro pode ficar ainda mais drástico, pois o atual crescimento do mercado imobiliário pessoense faz com que novas/antigas incorporadoras e construtoras passem a competir e demandar por mais terras e imóveis na cidade. Um exemplo disso é o apelido dado à cidade de “Miami brasileira” pela segunda maior construtora e incorporadora do Nordeste, o Setai Grupo GP. O grupo vê a cidade como um “Prato cheio para a construção civil”. Tal competição cria uma escassez de terrenos bem localizados e com boa infraestrutura para todo o resto da sociedade, fato que gera uma crescente especulação imobiliária e, consequentemente, uma cidade mais cara para todos/todas.
Com relação ao crescimento da especulação imobiliária na cidade, de forma “curiosa”, a maioria esmagadora dos vereadores da Câmara Municipal da cidade votaram para a exclusão, no Plano Diretor, de um artigo sobre o controle e uso do solo que orientava as futuras gestões para que evitassem a retenção especulativa de imóvel urbano, fato que resulta na sua subutilização ou não utilização. Para os vereadores, tal dispositivo legal poderia “gerar insegurança para os proprietários”, daí votaram para a retirada do mesmo. Ressaltamos que a exclusão do artigo fere o Art. 2º do Estatuto da Cidade que aponta para o fato de evitar a retenção especulativa de terras deve ser uma das principais diretrizes do Plano Diretor na busca de assegurar a função social da cidade e da propriedade urbana. Diante do exposto cabe a pergunta: a favor de quem atuam os representantes do povo?
Soma-se a isso a falta de transparência e controle social sobre o fundo público (isenções fiscais, descontos na outorga onerosa, doações ou concessões de terras públicas, entre outros, concedidos para “os amigos do rei”). A título de exemplo citamos uma das primeiras ações da atual gestão do município que foi conceder um desconto de 25% sobre a contrapartida financeira paga pelos empreendedores imobiliários. Tal ação favoreceu, principalmente, o setor privado e reduziu recursos do FUNDURB destinados à implementação de projetos de requalificação em áreas precárias da cidade.
Diante do exposto, chamamos a atenção para a necessidade de caminharmos em direção a práticas, realmente, democráticas em busca da construção da cidadania enquanto prática permanente, considerando o seu vínculo indelével com a vida nas cidades. A partir de diálogos e práticas nesse sentido, podemos evitar que o processo de planejamento e gestão urbana e o destino da população sejam pautados “de cima para baixo” do alto das coberturas, em acordos antidemocráticos, sem a nossa participação consciente e informada e, principalmente, negando os direitos do povo em favor de lucros para poucos.
*Prof. do Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGG/UFPB e Pesquisador do INCT - Observatório das Metrópoles – Núcleo Paraíba
**Professora Adjunta II do Departamento de Geociências/ UFPB e Pesquisadora Observatório das Metrópoles - INCT e coordenadora do Projeto de Extensão Pedagogia Urbana
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
Edição: Heloisa de Sousa