O caso da USP não é o primeiro e seguramente não será o último
Por Jusciney Carvalho Santana* e Lígia Ferreira dos Santos**
Considerado um clássico de Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas tem sido uma leitura reconhecidamente essencial por pesquisadores(as) no Brasil, sendo uma das obras mais lidas e importantes na luta antirracista. O livro, publicado originalmente em 1952, teve em 2020 uma edição especial pela Ubu Editora, com prefácio de Grada Kilomba, e posfácio de Deivison Faustino.
Grada Kilomba diz ter conhecido esse livro por meio de uma professora de Psicanálise que sugeriu ser uma leitura imprescindível, mas de difícil acesso em bibliotecas públicas. Recomendou, pois compreendia que essa leitura faria grande diferença na pesquisa de Grada Kilomba, já que havia ausência de autores negros e autoras negras nas bibliotecas de Portugal.
No prefácio da obra de Fanon, Grada Kilomba questiona sobre “como é que se pode escrever sobre a negritude no espaço onde não há um único livro escrito por autores negros e autoras negras?”. Ela, autora de Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano (2019), afirma que “o princípio da ausência no qual algo que existe é tornado ausente é uma das bases fundamentais do racismo”. Compreendeu que as obras de Frantz Fanon, apesar de existirem, tornam-se ausentes pois não circulam em bibliotecas públicas e, assim, deixam de ter existência real.
Fazendo um paralelo com essa reflexão muito bem-vinda de Grada Kilomba, podemos então problematizar a ausência física não só de escritores(as) negros(as) como também a necessidade de garantirmos a existência de mais professores(as) negros(as) e discentes negros(as), por meio de editais de seleção pública, que disponham dessa reserva de vagas específica.
Sobre as cotas, recentemente foram noticiadas novas denúncias de fraudes, em processos de heteroidentificação da Universidade de São Paulo (USP), destacando que a instituição estaria cometendo equívocos nos mecanismos adotados para verificarem se candidatos(as) aprovados(as) atendem ou não aos critérios para tornarem-se beneficiários(as) dessa política pelo critério racial. Lembrando ainda que a USP iniciou a implementação dessa política apenas em 2019, após muitos anos de omissão institucional sobre essa demanda.
Mas o caso da USP não é o primeiro e seguramente não será o último. Todo esse debate envolvendo as instituições de educação superior, seus processos de heteroidentificação e candidatos(as) que se sentem lesados(as) pelas decisões institucionais, quando não são aprovados(as) como cotistas, não só desqualifica a adoção de cotas para estudantes oriundos(as) da escola pública, que optam pela reserva de vagas para autodeclarados(as) pretos(as), pardos(as) e indígenas. Desqualifica também o papel do Estado que assumiu ser signatário da Declaração de Durban, em 2001, contra o racismo e a discriminação, oriundos de séculos de escravidão no Brasil.
As primeiras experiências da adoção de cotas começaram na UERJ, em 2001, sendo considerada a mais bem sucedida dentre as políticas públicas afirmativas, tornando-se Lei Federal em 2012, e renovada por mais 10 anos pela Lei nº 14.724, em 2023, após amplo debate na sociedade pelos movimentos negros como também pelo poder legislativo.
Tornou-se evidente a importância da sua continuidade, pois o cenário na educação superior se mantém desigual o que exige que as instituições educacionais, o Conselho Nacional de Educação e os ministérios correlatos busquem formas de aperfeiçoá-la, sob pena de não ser materializada em suas reais intenções. Destacamos que embora seja uma política estatal, está sempre sob ameaça em função do racismo institucional que continua sendo alimentado dentro e fora das nossas instituições públicas e também privadas.
Ora, se não garantimos a entrada e a permanência de mais estudantes negros(as), em nossas instituições, não teremos mudança no quadro de desigualdades sociais. Como Grada Kilomba reflete no prefácio do livro de Fanon, se entendemos que essa parcela da população brasileira continua ausente dos espaços de poder − e temos consciência histórica que os espaços de saber se constituem, por natureza, espaços de poder −, não teremos a estrutura social modificada, portanto, não contribuiremos, a partir do projeto de educação, para eliminação do racismo.
É fato que a política de cotas para o ingresso nos cursos de ensino médio integrado e superior, nos Institutos Federais (IFs), e nos cursos de graduação e pós-graduação nas Universidades, começaram a refletir a diversidade étnico-racial, exigindo a produção de novos pensares, saberes e demandas, sobretudo, na (re)formulação das políticas de inclusão, com destaque para criação de mecanismos para garantir que as ações afirmativas sejam aprimoradas e que sejam celebradas por toda a sociedade, não o contrário.
Nosso entendimento é que a ênfase midiática que recai sobre poucos casos de equívocos no indeferimento (recusa) de autodeclarações, em comparação ao grande número de candidatos(as) avaliados(as), contribui para desqualificar o processo, posto que esse mecanismo de controle também é pedagógico.
As comissões de heteroidentificação foram demandadas pelo Ministério Público Federal (Ferreira, 2020), em função das recorrentes denúncias de fraude de autodeclarações, de pessoas não negras que garantiam automaticamente suas vagas nos cursos, já que antes não havia nenhum mecanismo legal de fiscalização. Essas experiências foram evidenciando que apenas a autodeclaração do(a) candidato(a) não era suficiente para garantir que as vagas reservadas fossem destinadas a quem de fato elas se destinam.
Mas, como todo processo pedagógico, os equívocos acontecem e os ajustes são necessários. A tarefa de uma comissão, portanto, deve ser sempre a de zelar para impedir que o critério racial seja a escolha por quem não possui as características fenotípicas, que serão objeto de validação nas comissões internas designadas pelas instituições.
Portanto, nem a mídia nem as redes sociais devem julgar, se não foram educadas para esses julgamentos. Elas podem ser aliadas no sentido de estimular o letramento racial da população brasileira. Importante que seja de conhecimento público como as comissões são concebidas e atuam, e quais são os elementos técnicos para análise das características fenotípicas, a partir de vídeos e imagens (online), por exemplo.
Quando um candidato(a) não negro ocupa uma vaga destinada a uma pessoa negra, esse estudante colabora para legitimar a desigualdade racial daquela instituição. As comissões devem se esforçar para conduzirem seus processos e impedirem tal ocupação indevida.
o combate às fraudes deve ser defendido tanto por quem quer ser beneficiado pela política como por quem promove a política
Corroboramos na perspectiva de que o combate às fraudes deve ser defendido tanto por quem tem direito e quer ser beneficiado pela política como por quem promove a política, sendo a condição principal para mantê-la vigente, o acompanhamento e o controle da política, via processos de heteroidentificação.
Por fim, é preciso reafirmar a importância de se garantir a presença de mais pessoas negras na universidade e em espaços de poder. É fundamental que conquistemos mais autores(as) negros (as), que pesquisarão, escreverão e entenderão “como se constroem as relações subjetivas”, principalmente as negras em relação às brancas Fanon (2020). Enquanto sociedade, precisamos garantir a presença efetiva da literatura negra nas bibliotecas e a educação para as relações étnico-raciais nos currículos das escolas e das universidades.
Para saber mais
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. de Raquel Camargo e Sebastião Nascimento. São Paulo: UBU, 2020.
FERREIRA, Lígia dos S. Narrativas minhas, deles, delas, dels, enfim, nossas: escrevivências da heteroidentificação na Universidade Federal de Alagoas. REPECULT - Revista Ensaios e Pesquisa em Educação e Cultura, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 145-158, 2º sem. 2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
* Jusciney Carvalho Santana é pedagoga, doutora em Educação, Pós-doutoranda pelo POSAFRO/UFBA. Professora Associada do Centro de Educação da UFAL e docente externa no POSAFRO/UFBA. Autora do livro "Tem preto de jaleco branco? Os 10 primeiros anos das políticas afirmativas na Faculdade de Medicina da UFAL".
** Lígia Ferreira dos Santos é doutora em Estudos Literários, Professora Associada do Curso de Letras-Libras e do Mestrado Profissional em Letras da UFAL e ex-Coordenadora do Consórcio Nacional de Neabs, Neabis e grupos correlatos (CONNEABS) da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN).
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Edição: Carolina Ferreira