Os lugares autoconstruídos não são somente lugares de ausência e de informalidade
Por Carolina B. Tsuyuguchi*
No dia 29 de dezembro de 2020, às vésperas do ano novo, os moradores da Ocupação Luiz Gomes, localizada no bairro Jardim Paulistano, na cidade de Campina Grande (PB), receberam uma visita inesperada da polícia militar, junto a um oficial de justiça e um representante da Secretaria de Serviços Urbanos e Meio Ambiente (Sesuma), com a decisão judicial pela reintegração de posse na tentativa de despejo.
A ocupação já havia sofrido várias tentativas de despossessão, desde sua ocupação pelas famílias que não sustentaram o aluguel durante a pandemia do Covid-19. Entretanto, a ação citada se destacou em função do seu caráter oportunista, por visar despejar as famílias e demolir os barracos da ocupação em um momento de fragilidade.
Foi evidente o uso de uma estratégia de desarticulação dos movimentos de luta à moradia e dos advogados da ocupação, visto que o judiciário estava em recesso. Além da desmobilização política, notou-se também uma tentativa de desestabilização emocional da comunidade, diante dessa ameaça às vésperas de um período tão importante para as famílias, de celebração do Natal e do ano novo que viria.
Esse cenário é uma demonstração de como as gestões públicas conservadoras corriqueiramente tratam o que consideram estar à margem da legalidade.
Ocupação como um instrumento popular de direito à moradia
As cidades brasileiras, historicamente, evidenciaram processos de segregação socioespacial, como consequência das desigualdades socioeconômicas do país. Um dos reflexos dessa desigualdade é a má distribuição de terras: enquanto alguns têm inúmeros terrenos sem uso, outros não possuem ao menos um lugar para morar.
Para garantir a função social dos terrenos, ou seja, que eles sejam utilizados em prol dos interesses da sociedade, os municípios deveriam aplicar instrumentos de política urbana previstos no Estatuto da Cidade, como o Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios e o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo sobre terrenos e imóveis não utilizados e subutilizados.
No entanto, percebe-se uma ausência das gestões ao elaborar legislações e executar as tributações que garantem a função social da terra, uma vez que os interesses das gestões municipais e estaduais muitas vezes convergem com os interesses das classes dominantes, neste caso, os proprietários fundiários e os agentes do setor imobiliário.
Ainda é necessário que existam projetos para os terrenos ociosos de propriedade pública, os quais deveriam estar inseridos a um planejamento integrado e de captação de recursos, para garantir uma melhor qualidade de vida à população a partir do cumprimento da função social desses terrenos. Porém, observa-se também uma negligência sobre esses espaços, ou até mesmo um interesse na manutenção do seu esvaziamento momentâneo, a fim de promover uma ocupação a partir de negociações que atendam interesses privados.
Assim, compreende-se que é papel do Estado legislar e tributar sobre os terrenos ociosos, para que estes possam cumprir com seu papel social. Mas e quando as gestões não realizam esse papel? A partir dessa ação negligente, a população ocupa esses espaços em um ato de protesto e resiliência, os transformando em lar para aqueles que têm o seu direito constitucional à moradia digna negado.
A dualidade entre: formal e o informal, legal e ilegal
A população economicamente pobre se estabelece em espaços onde o Estado não se responsabiliza pelo controle da ordem, nem disponibiliza infraestruturas e serviços básicos. Diante da escassez, os residentes desses espaços procuram, a partir de sistemas autoconstruídos, ter acesso a esses recursos.
Em muitos dos territórios periféricos a moradia e a infraestrutura são autoconstruídas. Estruturas não governamentais, instituições de ensino e associações que atuam nesses locais operam para compensar a ausência do Estado. O crime organizado também se aproveita dessa ausência, para estabelecer suas próprias regras.
A mídia hegemônica frequentemente reforça as imagens de precariedades, ausências e violências ao se referir a esses territórios como “assentamentos informais”, “assentamentos precários” e outros termos que tomam conotação pejorativa. Esse artigo busca, em oposição, contribuir para evidenciar que os lugares autoconstruídos não são somente lugares de ausência e de informalidade.
Se passarmos a olhar os territórios periféricos como bairros construídos pelo povo, entendemos que são muito mais semelhantes ao que é considerado como “cidade formal.” Nessa perspectiva, a dualidade se dissipa. É válido considerar que poucas casas estão inteiramente dentro das normas, ou contaram com a expertise de arquitetos e engenheiros, no seu planejamento ou em sua construção. Ou ainda, passaram por um processo de regularização por meio dos órgãos competentes. Mesmo nos espaços onde residem a classe média e alta, a irregularidade fundiária é uma característica marcante.
Assim, se essas comunidades não se encontram tão distantes das áreas ditas formais, qual seria a intenção de construir uma imagem de ilegalidade sobre esses lugares? Seria possível, a partir dessas impressões, validar a exclusão, negligência e a violação ao direito à moradia, que essa população sofre cotidianamente?
A Ocupação Luiz Gomes
A Ocupação Luiz Gomes surgiu em uma propriedade do município, para onde está prevista a construção de um Conjunto de Habitação de Interesse Social, desde 2010. A população atualmente residente do lugar ocupou o espaço em 20 de junho de 2020.
As moradias da ocupação já tomaram forma de barracos, os quais posteriormente se consolidaram em casas de alvenaria (implantadas de acordo com um loteamento organizado pela ocupação, com apoio de técnicos). A ocupação já construiu em mutirão a Escola Popular Perla Albuquerque Lima, onde ocorrem estudos ministrados por membros das universidades, mas também por integrantes da própria comunidade. Ademais, ainda iniciou a implementação e a melhoria de infraestruturas de água e esgoto, a partir de autoconstrução, com apoio financeiro da Organização Não Governamental (ONG) Habitat para a Humanidade.
Essas conquistas consolidam cada vez mais a comunidade, ao mesmo tempo em que seus moradores resistiram a três tentativas de despejo e reintegração de posse promovidas pelo município, configurando a cena descrita no início deste artigo.
Devido à insegurança causada pela ameaça de remoção, alguns residentes se candidataram ao cadastramento de beneficiários dos programas habitacionais do governo. No entanto, relatam que, caso consigam a posse do terreno na Ocupação, optariam por permanecer na casa onde vivem. Ou seja, os habitantes consideram a qualidade de vida dentro da ocupação melhor do que em conjuntos habitacionais periféricos, seja por questões de transporte, inserção urbana ou mesmo afetivas.
A controvérsia
Há um ponto de incompatibilidade entre a ação e o discurso. Enquanto existe um processo de reintegração de posse sobre a ocupação sendo movido pela prefeitura, o prefeito Bruno Cunha Lima (União Brasil) gravou um vídeo, em 2023, apoiando a Ocupação Luiz Gomes e prometendo que em breve a área receberia infraestrutura de iluminação pública. Nessa promessa, ainda foi realizada a afirmação de que os postes de luz necessários para a implementação do sistema de iluminação chegariam na ocupação em um período de 15 dias. O vídeo em questão entrou em circulação há mais de seis meses e os postes de luz nunca foram entregues.
A partir das afirmações feitas e das ações controversas ao discurso da prefeitura, questiona-se: Como é possível uma gestão apoiar uma ocupação e simultaneamente agir para desapropriar a comunidade? Em prol de que foi gravado esse discurso?
Para adiante
O Estado deveria garantir o direito à moradia e à cidade, sem que fossem necessários tantos sacrifícios por parte da população. É essencial reconhecer que a luta da Ocupação São Luiz precisou ser traçada, como também garantir o direito dessas pessoas sobre a moradia erguida. Para isso, o primeiro passo, é a retirada do processo de reintegração de posse em andamento. É primordial valorizar o trabalho em conjunto da autoconstrução, validando o conhecimento popular e as decisões que eles tomaram sobre o espaço onde vivem.
A autoconstrução popular pode referenciar novas políticas urbanas municipais de cogestão dos espaços de moradia. As eleições em 2024 trarão oportunidades para a construção de agendas municipais mais comprometidas com os direitos à moradia e à cidade, desde que as forças populares possam ser protagonistas dessa construção.
A Ocupação Luiz Gomes segue organizada e em luta.
Enquanto habitação for um privilégio, ocupar é um direito!
*Carolina B. Tsuyuguchi é arquiteta e urbanista pela UFCG. Atualmente é pesquisadora do Observatório das Metrópoles - Núcleo Paraíba, mestranda em Desenvolvimento Urbano na UFPE e assessora técnica popular na Ocupação Luiz Gomes.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
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Edição: Carolina Ferreira