Sem as políticas de ações afirmativas [...], seria muito difícil eu estar cursando ensino superior
Por Helena Freitas*
Nasci em Salvador (BA), aos dois anos de idade minha mãe se separou do meu pai e voltou para sua cidade natal, aqui na Paraíba. Minha família sempre passou por dificuldades financeiras. Morávamos na zona rural, apenas minha mãe, minha irmã mais velha e eu. Minha mãe sempre nos sustentou sozinha, muitas vezes nos deixando aos cuidados de terceiros para conseguir trabalhar como doméstica, nunca deixou que faltasse comida.
Quando ela se casou com meu padrasto e nos mudamos para a cidade nossa condição melhorou um pouco, já que agora eram duas pessoas trabalhando. Então, tive a oportunidade de focar apenas nos meus estudos, mas, mesmo assim, me sentia muito mal por não ajudar com as despesas da casa e sempre pedia à minha mãe para me deixar trabalhar e ajudar; ela sempre negou e me disse para focar apenas nos estudos, que dessa forma eu poderia ter um futuro melhor que o dela.
Comecei trabalhar como babá de três crianças na mesma casa que minha mãe trabalhava como doméstica. Nós não gostávamos de trabalhar nessa casa por causa da nossa patroa que sempre falava coisas absurdas, muitas vezes dando a entender que eu não era inteligente.
Quando terminei o ensino médio, enquanto estudava para o vestibular, decidi encontrar um trabalho. Primeiro trabalhei como atendente de uma padaria, mas esse trabalho não durou muito. Assim, pedi à minha mãe que me colocasse na casa de alguma patroa dela. A partir daí, comecei trabalhar como babá de três crianças na mesma casa que minha mãe trabalhava como doméstica. Nós não gostávamos de trabalhar nessa casa por causa da nossa patroa que sempre falava coisas absurdas, muitas vezes dando a entender que eu não era inteligente.
Uma das meninas me perguntou por que meu cabelo era cacheado, e eu prontamente respondi que tinha nascido daquela forma.
Uma coisa que me impressionou nessa família foi que as crianças nunca tinham visto uma pessoa diferente dos padrões delas, enquanto tocava no meu cabelo e me encarava completamente confusa, uma das meninas me perguntou por que meu cabelo era cacheado, e eu prontamente respondi que tinha nascido daquela forma. Após meses trabalhando naquela casa, a patroa me mandou embora, pois eu não queria passar a dormir lá para cuidar integralmente das crianças, mas minha mãe permaneceu trabalhando lá.
Então, finalmente, eu passei no vestibular e estava extremamente feliz, eu sou a primeira pessoa da minha família a cursar um ensino superior. Liguei para o meu pai e dei a notícia o que fez ele chorar de alegria. Entrei por meio das cotas para estudantes oriundos de escola pública na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Eu comecei todo o processo para inscrição na universidade, separar todos os documentos, aprender a digitalizar tudo para poder enviar. Como era época de pandemia da Covid-19, a inscrição foi toda online.
Entretanto, encontrei um problema, meu irmão mais novo foi diagnosticado com TEA (Transtorno do Espectro Autista) e eu precisava enviar os documentos dele: um documento específico que comprovava que ele era diagnosticado, documento esse que eu só conseguiria no INSS e o processo demoraria. Eu não tinha tanto tempo para esperar. Nesse momento, eu me desesperei e achei que não conseguiria me inscrever na universidade. Minha mãe pediu para eu me acalmar, porque ela iria pedir ajuda à patroa que era advogada. Como eu não trabalhava mais lá, minha mãe levou uma parte do edital para que ela entendesse qual documentação eu precisava.
Ela falou que conseguiria, sim, o documento, mas falou para minha mãe que ela não deveria deixar eu ir para universidade, pois ela estaria “me perdendo para o mundo”, e que eu teria um futuro muito melhor trabalhando como babá e dormindo na casa da patroa, que minha vida seria boa e que minha mãe saberia exatamente onde eu estaria.
Naquele dia, minha mãe ficou muito brava e chegou em casa me dizendo o que ela havia falado, afinal ela e os filhos dela poderiam cursar um ensino superior, mas eu, filha de empregada doméstica ficaria melhor como babá de tempo integral.
Os dias foram passando e nada do único documento que faltava. O prazo estava acabando e eu me desesperando, então, decidi pedir ajuda para um amigo que já estava cursando universidade, ele me ajudou e disse que no lugar daquele documento eu poderia colocar o laudo do meu irmão. Esse amigo foi uma luz no fim do túnel, pois só por causa dele que consegui me inscrever, e o documento que a patroa falou que ia conseguir? Até hoje estou esperando!
Finalmente, o primeiro período na universidade começou, ainda era tempo de pandemia e todas as aulas eram on-line, eu só tinha um notebook velho e defeituoso que com um único movimento brusco, ele se apagava e demorava dias para ligar novamente. Eu estava tendo muitas dificuldades, além de que eu cuidava dos meus dois irmãos mais novos para que minha mãe e meu padrasto pudessem trabalhar. Muitas vezes precisava parar de assistir às aulas ou estudar para cuidar deles e limpar a casa. Depois de um tempo, com a ajuda do meu pai e um auxílio que recebi da universidade consegui comprar um notebook novo.
A pandemia estava começando a amenizar e as aulas semipresenciais iam voltando. Eu precisava me mudar para a cidade de Areia (PB), conversei com uma colega de turma e decidimos que íamos dividir um apartamento, porque seria menos gastos para nós duas. Mas, não tínhamos dinheiro suficiente para a mudança. Então, minha mãe pediu ajuda para o prefeito da cidade e ele cedeu um caminhão de mudança. De início eu e minha amiga moramos em uma quitinete com um único quarto e eu dormia na sala. Meu pai me ajudava com o aluguel e minha mãe com a feira do mês. Apesar de toda dificuldade financeira, estava indo bem, mas após um ano morando em Areia minha mãe me falou que estava muito difícil comprar comida para a casa dela e para mim e que, muito provavelmente, eu iria precisar trancar a universidade e voltar para a casa dela. Eu chorei muito, porque eu não poderia mais seguir meu sonho e não poderia algum dia ajudar minha mãe da forma que eu queria.
Naquele momento, a UFPB lançou o edital para os auxílios moradia e RU. Corri para pegar todos os documentos necessários e quando saiu o resultado pulei de alegria por ter conseguido. Hoje em dia, ainda recebo ajuda da minha mãe e do meu pai, mas graças aos auxílios, eu passo um pouco menos de dificuldade na questão financeira.
Sem as políticas de ações afirmativas, do Governo Federal, certamente, seria muito difícil de eu estar cursando o ensino superior, e manter-me fora de minha residência, em outra cidade, sem ações para políticas de permanência na UFPB, certamente, eu já teria voltado para casa. Se algumas pessoas pensam que outras com poucas condições financeiras devem permanecer em seus status social, só posso afirmar que são pensamentos atrasados e que não favorecem a melhoria da sociedade (individual ou social). O Brasil só pode crescer se houver políticas de superação da desigualdade social, por isso, por experiência própria: as políticas públicas (cotas) para entrar na universidade, as políticas de permanência e tantas outras que oportunizam as classes menos favorecidas economicamente a melhorar as condições de vida são mais que importantes, são obrigação do Estado e responsabilidade social.
Para saber mais
AIRES, José Luciano de Queiroz et. al. (Org). Diversidades étnico-raciais e interdisciplinaridade: diálogos com as Leis 10.639 e 11.645. Campina Grande: EDUFCG, 2013.
DAXENBERGER, Ana Cristina Silva; SILVEIRA, Sergio Roberto. Etnicidade e Direitos Humanos: diferentes leituras. João Pessoa: UFPB, 2023.
Disponível em http://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/book/1098
OLIVEIRA, Iolanda (org.). Negritude e Universidade: evidenciando questões relacionadas ao ingresso e aos projetos curriculares. Niterói: Alternativa, 2015.
*Helena Freitas, tenho 23 anos, estou cursando bacharelado em Ciências Biológicas pela UFPB, desde sempre me interessei pela biologia, já muito nova era encantada por animais. Quero me profissionalizar na área de animais silvestres, principalmente grandes felinos e serpentes, graças às cotas estou realizando meu sonho.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
***Este relato faz parte de uma série da coluna "História Pública & Narrativas Afro-Atlânticas", do NEABI-UFPB, com o objetivo de trazer histórias de estudantes que entraram na universidade por meio das políticas de cotas. Leia o primeiro texto da série aqui.
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Edição: Carolina Ferreira