A problemática da falta de moradia nas cidades brasileiras perdura há bastante tempo
Por Camila Coelho Silva* e Doralice Sátyro Maia**
Os centros antigos¹ têm sido objeto de debate e preocupação em cidades das mais diversas realidades. Nas últimas décadas, com a expansão das cidades e o surgimento de novas centralidades, os seus centros, aqueles historicamente assim reconhecidos, geralmente caracterizados por possuírem boa infraestrutura, postos de trabalho (seja formal ou informal) e oferta de serviços públicos, passaram por mudanças significativas: lojas de grande porte foram fechadas – ora permanecendo esvaziadas, ora sendo substituídas por outras mais populares –, serviços públicos tiveram suas sedes transferidas para outras áreas e muitos edifícios empresariais se tornaram obsoletos.
Nesse processo, se estabelecem nos centros antigos atividades menos rentáveis, por vezes informais e/ou ilegais, exercidas por moradores/usuários de baixo ou nenhum poder aquisitivo, como também vão sendo gerados “vazios urbanos” no “coração” das cidades. Por conseguinte, surgem e se reproduzem diversas modalidades de moradia popular, a exemplo de favelas, habitações coletivas precárias na forma de vilas e cortiços, bem como ocupações.
As vantagens da população de baixa renda residir nos centros antigos, mesmo que em péssimas condições de habitabilidade, se evidenciam quando comparadas às habitações nas periferias, marcadas pelas longas distâncias, pelo sistema de transporte público ineficiente (quando existe), pela falta de infraestrutura, entre outros.
Entretanto, em todo o território brasileiro nota-se que a produção de habitação de interesse social continua seguindo a lógica de produção periférica da cidade, lógica essa patrocinada pelo Estado, e que tem intensificado os mais diversos tipos de problemas urbanos: ambientais, de mobilidade, de gestão pública e, consequentemente, de qualidade de vida.
Assim, milhões de brasileiros são atingidos por condições precárias de moradia resultantes do modelo de desenvolvimento econômico e político desigual do país. Este modelo nutre e aprofunda a concentração de renda nas mãos de poucos, sobrelevando o interesse privado e a obtenção de lucros em desfavor dos interesses público e coletivo. Prova disso é a expansão de cerca de 40% do número de brasileiros morando em favelas nos últimos 12 anos, segundo uma prévia dos dados do Censo Demográfico 2022, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A problemática da falta de moradia nas cidades brasileiras perdura há bastante tempo. Foi então com o intuito de combater a problemática habitacional que, em 2009, o governo federal, durante o segundo mandato do presidente Lula da Silva, criou o ‘Minha Casa, Minha Vida’ (MCMV). Esse programa, desde a sua primeira versão, passou por algumas modificações, sendo encerrado em 2020. Uma das maiores críticas feitas na sua primeira fase foi o fato de reproduzir a antiga lógica da produção de habitação popular nas áreas periféricas das cidades, normalmente, pouco urbanizadas e/ou desabitadas, com grandes glebas de terras que potencializam, por sua vez, a implantação de megaempreendimentos padronizados, distanciando seus beneficiários de seus postos de trabalho, dos serviços urbanos básicos e da dinâmica urbana em que estavam inseridos.
O Estado teve pouco ou nenhum controle sobre a localização desses empreendimentos imobiliários, atravessada por interesses econômicos e comerciais dos agentes privados envolvidos, seguindo, portanto, a lógica do mercado imobiliário.
Nessa lógica, os centros antigos, áreas que já possuem a infraestrutura necessária para a manutenção da vida, não são lucrativos. Os agentes privados demonstram desinteresse devido ao valor dos terrenos/edifícios e às especificidades dos projetos a serem desenvolvidos em edifícios ociosos, distantes da padronização, da rapidez e da produção em massa, elementos que definem seu alto lucro.
Do mesmo modo e, apesar da importância da área central urbana para questões como moradia, trabalho e espaço público, as políticas habitacionais e patrimoniais não têm valorizado esses usos. Frequentemente visam à valorização da área focada sobretudo em grandes investidores e no turismo, enquanto as famílias pobres são diretamente ou indiretamente expulsas, não havendo interesse em favorecer a permanência e melhoria das habitações existentes; ignoram-nas, perdendo a chance de utilizá-las como uma das soluções para manutenção do patrimônio e da vitalidade dessa área.
Essas contradições são observadas no centro antigo da cidade de João Pessoa: ao mesmo tempo que apresenta um elevado déficit habitacional – revelado nas habitações precárias e ocupações, confirmando o interesse e a necessidade da população empobrecida por viver no centro da cidade – possui um número significativo de edificações desocupadas ou subutilizadas.
Assim como outras cidades com origem no período colonial, o centro da cidade de João Pessoa é constituído por duas porções definidas pela topografia – cidade baixa (nas proximidades do Rio Sanhauá e identificada principalmente como bairro Varadouro) e cidade alta (classificada administrativamente como bairro Centro). Em toda essa área, encontra-se um diversificado patrimônio histórico de distintos períodos, composto por igrejas, conventos, sobrados, casarões, etc., e foi onde se desenvolveu um misto de atividades de comércio, serviços e habitação desde os primórdios da constituição e crescimento desta cidade.
O espaço permaneceu dinâmico e vivo até os dias atuais, apesar da degradação física de grande parte dos imóveis e da infraestrutura urbana, bem como diante das “novas” centralidades que acompanharam a expansão da cidade. Nesse processo, ocorreu o deslocamento das habitações de classes médias e elites que se localizavam na área a partir dos anos 1950 e, do seu entorno, sobretudo, em direção à orla marítima a partir dos anos 1970 – 1980. Neste período, a área central é a principal e única centralidade da cidade.
Com o surgimento de outras centralidades, sejam nos bairros onde se concentra a população de renda média a alta, sejam nos bairros populares, vai havendo o que se caracteriza como processo de esvaziamento do espaço central da cidade.
Desde então, observa-se a degradação de seus edifícios e espaços públicos, que recebe nos anos 1990 ações de recuperação e requalificação em uma pequena porção, através de financiamento e parceria entre o governo do estado e o governo espanhol firmada em 1987. Nos últimos decênios, esse processo se intensifica, sendo agravado com a pandemia de Covid-19, e, por conseguinte, torna-se mais uma vez objeto de debate por parte do poder público. Destaca-se que, em 2023, o presidente Lula assume o governo, mudando as políticas sociais e relançando o programa MCMV. Nesse ínterim, a discussão a respeito da deterioração do Centro Histórico de João Pessoa é retomada, enfatizando-se a necessidade de recuperação econômica da área e a problemática habitacional.
O programa MCMV é relançado, por meio da Medida Provisória nº 1.162, de 14 de fevereiro de 2023, convertida na Lei nº 14.620, de 13 de julho de 2023, com a proposta de avançar em termos da melhor localização dos empreendimentos habitacionais, garantindo a proximidade ao comércio, a equipamentos públicos e acesso ao transporte público.
Com as mudanças das regras, observa-se que uma das prioridades passa a ser o aproveitamento do estoque imobiliário das áreas centrais urbanas para promoção de habitação de interesse social, mais exatamente a partir do Programa MCMV Requalificação/Retrofit e o incentivo aos empreendimentos autogestionários através do MCMV Entidades. Tem-se observado, por conseguinte, uma mudança por parte do poder público municipal e estadual quanto à inserção, na agenda da habitação social, de proposições localizadas no centro antigo da cidade de João Pessoa.
Atualmente, há duas propostas de habitação de interesse social na área, financiadas pelo MCMV, efetivamente as primeiras iniciativas no centro antigo da cidade em toda sua história: o edifício do antigo Instituto de Previdência e Aposentadoria dos Servidores do Estado (IPASE-PB), atual INSS, contemplado no programa MCMV Entidades e autogestionado pela União por Moradia Popular da Paraíba (UMP-PB); e o edifício Nações Unidas, há pouco tempo inserido no Programa MCMV Requalificação/Retrofit e que, desde abril de 2022, está ocupado por integrantes do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), com a ocupação João Pedro Teixeira, que reivindica o direito de morar com dignidade.
Tais proposições fazem parte de um conjunto de medidas e projetos para o centro antigo da cidade, nomeado de programa ‘Viva o Centro’, anunciado em 12 de dezembro de 2023, fruto de uma parceria entre o Governo do Estado e a Prefeitura Municipal de João Pessoa, que não se restringe à questão habitacional, contemplando ações voltadas para infraestrutura, cultura, turismo, segurança, mobilidade, incentivos, isenções fiscais, entre outros. A estimativa é a de que os investimentos por parte do Governo do Estado e da Prefeitura Municipal sejam de cerca de R$ 400 milhões.
O programa ‘Viva o Centro’ segue o padrão de outros programas lançados em diversos municípios brasileiros, a exemplo de Salvador (BA), com o ‘Renova Centro’ (2023), ou o ‘Programa Municipal Requalifica Centro’, em São Paulo/SP (2021), o ‘Reviver Centro’, do Rio de Janeiro-RJ (2021), ou ainda Recife-PE onde foi instituído o ‘Recentro’ (2021), todos permeados de incentivos fiscais para tornar as áreas centrais mais atrativas e produtivas.
As recentes ações e políticas promovidas pelo poder público federal aqui brevemente apresentadas e sua influência nas políticas municipais de promoção de habitação social no centro antigo de João Pessoa se delineiam como um direcionamento efetivo à árdua luta dos movimentos sociais por moradia digna, mas ainda é cedo para afirmar se se efetivarão como estão propostas.
Para viabilizar o acesso da população de mais baixa renda a uma região detentora de boa infraestrutura, acessibilidade e serviços e romper com a estrutura da segregação socioespacial, é necessário vincular a terra urbana aos interesses de toda a sociedade, e não de um grupo com interesses privados e individuais. A ação e intermediação do poder público, principalmente, do municipal, se faz fundamental.
Enquanto o setor privado for o principal condicionador das decisões, os cidadãos não terão voz nas decisões da gestão das cidades e continuarão sendo tratados como ‘objetos’ e não como ‘sujeitos’ de ação.
Nesse sentido, e às vésperas, por assim dizer, das eleições municipais, devemos estar atentos às possibilidades de idealização de um governo efetivamente democrático, que leve em conta os reais problemas da população, por exemplo a falta de moradia, como também esteja aberto à construção coletiva de soluções para os desafios impostos pela desigualdade social.
O espaço fala... o centro antigo pede gente para morar. A população mais empobrecida clama por moradia digna. Os interesses coletivos devem protagonizar a agenda pública e aqui temos um caminho bem delineado. Por que não fazer isso acontecer?
Nota
1 Centro antigo é um termo semelhante a centro tradicional, centro primaz. Centro histórico é o termo mais popular. Este artigo segue linha de pensamento, na qual todas as áreas da cidade têm sua história, logo são históricas.
*Camila Coelho Silva é professora do IFSertãoPE, arquiteta e urbanista, mestre e doutoranda pelo PPGAU-UFPB. É membro do Grupo de Estudos Urbanos (GeUrb/UFPB), atuando, principalmente, nos seguintes temas: áreas urbanas centrais, habitação social e patrimônio histórico.
**Doralice Sátyro Maia é professora da UFPB, graduada, mestre e doutora em Geografia, com pós-doutorado na Univ. de Barcelona, no IPPUR/UFRJ e na Univ. de Valladolid. Coordenadora do Grupo de Estudos Urbanos (GeUrb) e da Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias (ReCiMe). Pesquisadora CNPq (PQ).
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
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Edição: Carolina Ferreira