Paraíba

ENTREVISTA

Em entrevista ao BdF/PB, a geógrafa Andréa Porto Sales explica paralelos entre a tragédia no Rio Grande do Sul e o planejamento ambiental vigente na Paraíba

'O desastre no Rio Grande do Sul era uma tragédia social já anunciada por cientistas, porém negada por políticos'

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Reprodução - Foto: Divulgação/Prefeitura de Lajeado

A tragédia das chuvas e inundações no Rio Grande do Sul já entra para a lista de maiores catástrofes causadas por tempestades da história do Brasil. De acordo com o último boletim da Defesa Civil, subiu para 116 o número de mortos por causa dos temporais que atingem o Rio Grande do Sul desde 29 de abril. Há 756 feridos e 143 desaparecidos, segundo boletim divulgado às 12h15 desta sexta-feira (10/05).

O número de pessoas fora de casa subiu para 408,1 mil. Há, no total, 70.772 pessoas recebendo acolhimento em abrigos e outras 337.346 nas casas de amigos ou parentes.

O RS tem 437 dos seus 497 municípios com algum relato de problema relacionado aos temporais, com 1,9 milhão de pessoas afetadas.

Conversamos com a professora e pesquisadora do Departamento de Geociências da UFPB, Andréa Porto Sales, para entender os paralelos climáticos entre os dois estados (Paraíba e Rio Grande do Sul), e compreender as iniciativas de prevenção e proteção do meio ambiente na PB. Confira.

Brasil de Fato: Neste momento, quais paralelos podemos fazer entre a tragédia do Rio Grande do Sul e o planejamento ambiental vigente no Estado da Paraíba (principalmente com relação a desastres e catástrofes)?

Andréa Porto Sales: Primeiro é importante dizer que os estados estão localizados em regiões climáticas distintas da Terra. O Rio Grande Sul está localizado abaixo da linha do Trópico de Capricórnio, onde se configura um clima subtropical, que se caracteriza por ter as estações bem definidas, com verões bem quentes e invernos bem frios. Já a Paraíba está 7°(sete graus) abaixo da linha do Equador, numa região climática de temperatura elevada o ano todo, com episódios pontuais de precipitação intensa ao longo do ano. Logo, os dois estados possuem diferentes modelos climáticos para a ocorrência de eventos extremos. 


Andréa Porto Sales/ Foto: Internet

A ocorrência, distribuição e intensidade da chuva estão relacionadas com os fatores geográficos do clima, as especificidades da rede hidrográfica, relevo, cobertura vegetal e padrão de uso e ocupação do solo do território. Portanto, é preciso compreender que os paralelos sobre essa tragédia entre o Rio Grande do Sul e a Paraíba não devem ser realizados atribuindo determinações aos elementos naturais.

Cito apenas duas: o projeto do Polo Turístico e as obras viárias que têm derrubado fragmentos de florestas e desequilibrado ecossistemas diversos. Seria essa a perspectiva de desenvolvimento a ser adotada?

A tragédia é social, das causas à catástrofe. E ainda que as consequências possam guardar semelhanças com os componentes ambientais, como por exemplo as inundações em planícies fluviais e marinhas, não podemos esquecer que a tragédia resulta sobretudo de políticas públicas equivocadas, do descumprimento da legislação ambiental e da negligência do risco. 

Os eventos extremos e seus riscos são percebidos e definidos há bastante tempo e há vários relatórios internacionais e nacionais que trazem hipóteses muito contundentes acerca do comportamento do clima. Os gestores dos riscos, com destaque os nossos governantes, têm demorado a agir. Mas, não foi o caso do Rio Grande do Sul, que já conta com um Fórum Gaúcho de Mudanças Climáticas desde 2008. Aqui na Paraíba, por exemplo, não temos nada ainda, e não foi por falta de provocação dos especialistas. 

O Plano de Ação Climática de JP é um plano fajuto e ineficiente, feito para constar, pois foi elaborado em bases metodológicas frágeis e duvidosas, descolado do plano diretor da cidade e de outras leis municipais importantes no ordenamento territorial

Porém, muito embora as institucionalidades como o Fórum, os planos de ação e os fundos sejam importantes, devemos nos atentar para o encaminhamento das práticas políticas. Não adianta ter plano e ele ser ineficiente, não adianta ter fundo e ele não ser utilizado, ou ser utilizado em ações que não são resolutivas.  

Na Paraíba, temos um cenário de seca para o Sertão e de muita precipitação no leste do estado (na Zona da Mata) de acordo com o relatório Brasil 2040. E o que tem sido feito? Nada. Não há uma política pública no estado, um comitê, um fundo ou pelo menos uma carta compromisso referente às mudanças climáticas. Absolutamente, nada. Muito pelo contrário, todo o discurso desenvolvimentista do estado é pautado em ações (como já sabemos) que catalisam e intensificam os eventos extremos.

Não há cumprimento da legislação ambiental para obras que supostamente aumentam o número de emprego ou são consideradas de utilidade pública, cito apenas duas: o projeto do Polo Turístico e as obras viárias que têm derrubado fragmentos de florestas e desequilibrado ecossistemas diversos. Seria essa a perspectiva de desenvolvimento a ser adotada? Não há fiscalização das atividades que geram poluentes atmosféricos. Mais uma vez, muito pelo contrário, recentemente, o governo do estado deu redução de 50% do ICMS sobre o óleo diesel para empresas que fazem o transporte de passageiros. Não há ação nesse sentido. 

Paraíba e Rio Grande do Sul possuem diferentes modelos climáticos para a ocorrência de eventos extremos. 

Na escala das cidades, que são impulsionadoras das mudanças climáticas devido às suas emissões de gases poluentes e padrões de consumo, João Pessoa é o único município da PB que possui um plano de ação climática. Porto Alegre tem um desde o início dos anos 2000. Ambos preparados pela consultoria da ICLEI (International Council for Local Environmental Initiatives). O Plano de Ação Climática de JP é um plano fajuto e ineficiente, feito para constar, pois foi elaborado em bases metodológicas frágeis e duvidosas, descolado do plano diretor da cidade e de outras leis municipais importantes no ordenamento territorial, com ações de baixa resolução a curto e médio prazo, e uma participação popular forjada na ludibriação e manipulação. 

Portanto, é aqui que mora um paralelo: nas ações governamentais que ignoram as causas do problema e se omitem em encontrar soluções que sejam coletivas, ecológicas e baseadas no bem comum. 

O outro paralelo que pode ser feito, num cenário hipotético, é sobre uma possível catástrofe (e suas consequências). Nossas cidades não estão preparadas para receber um grande volume de água. Todos os municípios que estão dentro da bacia do Rio Paraíba podem ser bastante afetados. Cada vez mais estamos impermeabilizando o território das nossas cidades, com obras de pavimentação e o aumento do potencial construtivo do lote. Nossos rios estão poluídos, canalizados e suas matas ciliares minguam junto com os fragmentos de florestas que são desmatados. As inundações, especialmente, nas regiões de planície, sejam fluviais ou marinhas, podem ser piores, pois nosso sistema de drenagem é um dos piores do Brasil. E não podemos desconsiderar o risco de deslizamento de terra.

O tratamento dos riscos não pode ser simbólico e a participação da população para se proteger deles e evitar as catástrofes é fundamental. Nesse sentido, quando comparamos com o que está em curso no Rio Grande do Sul, estamos muito piores. Sorte nossa que a chuva desse porte ainda não chegou.

A tragédia resulta sobretudo de políticas públicas equivocadas, do descumprimento da legislação ambiental e da negligência do risco


BdF: Como você analisa o desastre anunciado no Rio Grande do Sul ?

APS: Uma tragédia social anunciada por cientistas e negada por políticos. Uma tragédia que multiplica as crises que já temos. Vivemos um momento de negacionismo e retrocessos perigosos na política ambiental e urbana dos municípios brasileiros. O agronegócio e o mercado imobiliário estão operando um verdadeiro desmonte dessas políticas públicas e corroendo o país, de Norte a Sul e de Leste a Oeste.

A falta de sinergia dentro do Estado brasileiro e dos governos com a população na construção de soluções e na sua execução, agrava o problema. Não podemos nos unir apenas na hora de reparar e compensar danos. E não quero dizer isso para tirar a beleza dos atos de solidariedade que se estabelecem, até porque acredito que eles demonstram como é possível agir em coletivo, no ritmo e no tempo certo. Essa tragédia joga na nossa cara não só um modelo de urbanização baseado na desigualdade e na baixa qualidade de infraestruturas básicas das cidades. Mas revela também um ordenamento territorial que não reconhece os limites da natureza. 

Tudo isso resulta de um agir ético invertido nas esferas da moralidade: na microesfera, com a responsabilidade individual; na mesosfera, com a responsabilidade cidadã e na macroesfera com a ideia de cidadania universal. A crise climática é uma crise planetária. Todos sentirão seus efeitos em algum nível e por região climática.

Portanto, acredito que vivemos um momento delicado, que pode sim ser revertido. A capacidade da natureza de depuração e de transformação são incríveis. E com o acúmulo de conhecimento que temos aqui, podemos acelerar a transição com ações de adaptação e mitigação justas e regenerativas.

BdF: Quais são os territórios paraibanos que mais preocupam na questão de possíveis desastres naturais?

APS: Eu não sou a melhor pessoa para te responder isso, mas considerando a seca para o Sertão e a grande precipitação para a Zona da Mata, acredito que precisamos pensar nos enclaves de baixa vulnerabilidade e risco que existem nessas mesorregiões. No geral, tratam-se de territórios de comunidades tradicionais e ribeirinhas. Nas cidades, é preciso ter atenção também para as áreas de inundação, deslizamento e para a infraestrutura de drenagem e rios. 

Pensar, analisar e monitorar os efeitos das ondas de calor é muito importante e urgente. É uma coisa que me preocupa muito por ser camuflada dentro de outros problemas. Precisamos entender como elas estão impactando a saúde da nossa população, aumentando a demanda por energia e comprometendo as matrizes de cultivo.

BdF: Já podemos dizer que estamos em um Estado de Emergência Climática?

APS: Sim. E já existem tippings points, isto é, pontos de não retorno, como o derretimento das calotas polares, o colapso nos corais e nas florestas tropicais. Desde 2009, quando a população urbana do planeta tornou-se, oficialmente, maior que a população rural, a emissão de gases do efeito estufa acelerou. A reversão disso é lenta. Existem soluções e elas precisam ser pensadas e executadas com celeridade e sinergia entre atores e setores produtivos. As condições de vida na biosfera só foram possíveis em função da estabilidade na atmosfera, mudamos isso e isso compromete a nossa existência, e não a do planeta em si. Os cenários climáticos alertam sobre a recorrência e a maior intensidade dos seus eventos e há um despreparo generalizado sobre como lidar com eles e promover, especialmente, ações de adaptação e recuperação (quando for o caso) com celeridade. 

BdF: O que deve ser feito pelos gestores em formato de urgência para evitar catástrofes, de forma localizada e de forma global?

APS: O óbvio: ler os relatórios, dialogar como os especialistas, empenhar recursos para fortalecer os sistemas de prevenção e proteção, promover ações de adaptação, mitigação e criar um sistema de participação social para busca de soluções em coletivo. E claro não utilizar do greenwashing (expressão que significa “maquiagem verde” ou “lavagem verde”. Nesses casos, as marcas criam uma falsa aparência de sustentabilidade, sem necessariamente aplicá-la na prática).

*Andréa Porto Sales é Geógrafa e Doutora em Geografia Humana. Professora adjunta do Departamento de Geociências da Universidade Federal da Paraíba, pesquisadora no INCT Observatório das Metrópoles - PB e coordenadora no projeto de extensão Pedagogia Urbana.


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Edição: Cida Alves