Paraíba

Coluna

Minha história não é uma história de ninar...

Foto do Evaristo Alves de Araújo Júnior - Foto: Internet
O problema do racismo e da desigualdade em geral está, intrinsecamente, ligado à educação

Por Evaristo Alves de Araújo Júnior*

Começo a revelar minha história saudando minha ancestral mais próxima, minha mãe. Uma mulher preta, empregada doméstica, que saiu do interior da Paraíba ainda muito cedo para tentar a vida na capital. Nasci quando minha mãe completava seus 40 anos; a sua primeira gestação foi tardia e, quando perguntado por qual motivo eu não tinha irmãos, ela sempre me respondia: “meu filho, eu trabalhava e morava em casa de família, não ia ter um filho para criar na casa dos outros!”.

Minha mãe estudou até o antigo 2º grau (atual ensino médio), sua patroa era professora e a incentivou terminar os estudos no colégio de freiras em João Pessoa. Um dos seus relatos mais doloridos e que sempre me atravessa é o de que ela tentou começar o magistério, na época, mas a rotina de trabalho exaustivo lhe fez desistir. Ela me dizia: “mainha queria ser professora, mas eu já chegava na escola muito cansada nos dias em que eu conseguia ir...”

O aumento da presença de negros no corpo discente das universidades tem, portanto, impactos, tanto ideológicos quanto econômicos, desafiando as estruturas de poder historicamente estabelecidas

A história de minha mãe não é só dela, é nossa! É também de cada mulher preta nesse país, que tentou um sonho e teve que escolher sobreviver. O racismo se apresenta na vida da gente em diversas categorias. “O racismo constitui todo um complexo imaginário social que, a todo momento, é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional. Após anos vendo telenovelas brasileiras, um indivíduo vai acabar se convencendo de que mulheres negras têm uma vocação natural para o trabalho doméstico” (Almeida, 2019, p. 09). Terminei meu ensino médio numa escola filantrópica, minha mãe nunca desistiu de mim.

Acordava cedo todos os anos para tentar uma vaga na escola mais disputada da região, foi assim desde a minha pré-escola. Apaixonei-me pela docência por inspiração, tive uma professora de Biologia incrível e ciências biológicas foi a minha primeira escolha no PSS (antigo vestibular) e posteriormente no Enem. Passei na 4.ª chamada do Sisu − ampla concorrência, com ingresso no segundo semestre. Apesar de negro, não me encaixava nas cotas na época por ter estudado em escola filantrópica. Minha mãe não acreditou, como o filho de uma mulher preta, empregada doméstica e pobre pode passar numa universidade pública federal?!

Vamos ocupar nossos lugares e nos reconhecer como merecedores.

Presumi que passar em uma universidade federal fosse o suficiente, compreendi que as condições de permanência são os maiores desafios. Meu curso era integral. Minha mãe estava aposentada em decorrência de um acidente que a invalidou (laudo no INSS), recebia um salário mínimo para custear a casa, remédios e um adolescente. E agora, como pagar meu transporte até a universidade, minhas xerox, jaleco, materiais e alimentação? Eu já tinha idade para trabalhar, e assim o fiz. Fui desestimulado pelo sistema e precisei desistir. Precisava aliviar as condições em casa, minha mãe estava ficando doente e ainda não tínhamos um diagnóstico. 

Abandonei a universidade, e pouco tempo depois abandonava o trabalho para cuidar exclusivamente da minha mãe, que foi diagnosticada com câncer. Tentei voltar à universidade, mas ela dava entrada pela última vez no hospital quando me olhou e disse: “quando meu filho está voltando para seus estudos, eu fico doente e atrapalho”. Essas foram algumas das suas últimas palavras. Dias depois minha mãe entrou em coma e faleceu no dia 10/10/2014.

Conhecido no Candomblé como Odétunji, o caçador que retornou! Eu sou todos os meus ancestrais, eu sou um, mas não sou só.

Estava de luto, em um profundo estado de depressão. Morrera a pessoa que acreditei dar melhores condições de vida com os meus estudos. No ano seguinte, retornei à universidade, porém, as duas maiores greves da instituição aconteceram. Precisava de algo que me desse retorno rápido, continuar na Biologia já não me dava esperança apesar de receber uma bolsa por participar de projetos, custeava apenas o meu transporte e os gastos necessários advindos do curso. Apesar disso, foi nesse curso que compreendi não ser um caso isolado.

Reconheci-me como pessoa negra por fenótipos e por identidade. A mácula social, o racismo, era pauta reconhecida na minha vida. Tive a disciplina de Libras como obrigatória, e foram as melhores aulas naquele período. Mais uma grande inspiração, tive outra professora incrível e me apaixonei pela língua de sinais. Tomei uma decisão, iria me tornar Tradutor e Intérprete de Libras, e assim o fiz. Mudei de curso, comecei a estudar Letras Libras EaD na UFPB.

Um salve para os cursos EaD! 

“A proposta brasileira de uma Universidade Aberta construída por e nas universidades convencionais parece ser um caminho bastante adequado para ampliar a oferta e democratizar o acesso, assegurando a qualidade acadêmica”. (Mill; Pimentel, 2013, p. 255). Só sabe a importância dessa modalidade quem não tem mais esperança, e teve todas as suas expectativas frustradas por condições de (im)permanência nas universidades. 

Sou professor de Libras, trabalho com estudantes surdos, como Tradutor Intéprete de Libras, e militante da inclusão social. Tudo isto se deu porque o programa UAB (Universidade Aberta do Brasil) tem se consagrado como alternativa democrática de inclusão e acesso ao ensino superior a tantas pessoas que não conseguem estar presencialmente em um campus universitário. Diga-se de passagem, que a UFPB tem garantido excelência na área.

Silvio de Almeida, no livro Racismo Estrutural (Almeida, 2019, p. 101), é muito lúcido ao explicar que muitas pessoas reconhecem que o problema do racismo e da desigualdade, em geral, está intrinsecamente ligado à educação. Porém, muitas delas se opõem às políticas de cotas. Essa observação é descrita por ele quando diz que, no Brasil, a universidade não é apenas um local de formação técnica e científica para o trabalho, mas também um espaço associado ao privilégio e ao destaque social, frequentemente concebidos como reservado para pessoas brancas pelo imaginário social produzido pelo racismo.


Capa do livro Racismo Estrutural. Coleção Feminismos Plurais / Foto: Internet

O aumento da presença de negros no corpo discente das universidades tem, portanto, impactos, tanto ideológicos quanto econômicos, desafiando as estruturas de poder historicamente estabelecidas. Hoje, dia 08 de abril de 2024 o dia em que escrevo, recebi o resultado da minha aprovação na prova escrita do mestrado. Obtive a maior nota da minha linha de pesquisa. Minha vaga é para ações afirmativas, essas vagas são nossas e vamos pegar o que é nosso de direito.

Vamos ocupar nossos lugares e nos reconhecer como merecedores. Eu não desisti, minha existência é uma afronta para o sistema e, já dizia Conceição Evaristo, minha xará: “A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar pelos da casa-grande, mas sim, para incomodá-los em seus sonhos injustos.” (Evaristo, 2017).

Satisfação, meu nome é Evaristo Alves de Araújo Júnior, homem cis, gay, negro, candomblecista e o filho da Dona Maria José Bezerra. Conhecido no Candomblé como Odétunji, o caçador que retornou! Eu sou todos os meus ancestrais, eu sou um, mas não sou só.

Para saber mais 
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. 
MILL, D.; PIMENTEL, N. M. (Orgs.). Educação a Distância: desafios contemporâneos. São Carlos: EdUFSCar, 2013.

*Licenciado em Letras Libras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), aluno do curso de Especialização Educação Bilíngue de Surdos na Modalidade a Distância - Lato Sensu na Universidade Federal do Cariri (UFCA). Professor, e tradutor intérprete de Libras no Governo do Estado da Paraíba, na Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência (FUNAD). 

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

***Este relato faz parte de uma série da coluna "História Pública & Narrativas Afro-Atlânticas", do NEABI-UFPB, com o objetivo de trazer histórias de estudantes que entraram na universidade por meio das políticas de cotas. Leia o primeiro texto da série aqui.


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Edição: Cida Alves