O mercado imobiliário é o setor econômico que está na vanguarda de toda essa transformação
Por Rafael Faleiros de Padua*
Os bairros da orla de João Pessoa estão em um avançado processo de destruição de ambientes construídos, geralmente casas térreas, para a construção de edifícios altos. No bairro de Manaíra, por exemplo, em todos os cantos há conjuntos de casas destruídas, para logo serem substituídas por tapumes ilustrados com os letreiros de construtoras que irão edificar um prédio que, segundo os gabaritos permitidos, serão mais altos quanto mais se afastam da orla.
Na orla de Manaíra (e também de Tambaú e Cabo Branco), quase não restam mais as casas de veraneio voltadas para a direção sudeste no terreno, na direção do vento, com arquiteturas que facilitavam a ventilação de seu espaço interno. Quase todas essas casas já foram demolidas para a construção de prédios de poucos andares, segundo permite a legislação urbanística sobre a altura das construções.
Nota-se, flagrantemente, uma impermanência da paisagem, quando vemos que de um dia para outro, uma construção de um ponto de comércio que funcionou décadas ou uma casa familiar das redondezas foram abaixo e ficaram somente entulhos.
Como podemos pensar esse movimento de destruição e reconstrução da cidade? O que ele revela do conteúdo do espaço urbano hoje?
Uma constatação imediata é de que um espaço construído que faz parte da paisagem há décadas, que levou um tempo para ser construído e fez parte por um tempo relativamente longo da vida das pessoas do lugar pode ser destruído em pouco tempo, em um dia ou dois. Em três dias, o terreno pode estar limpo e ter iniciada a preparação para a nova construção que será feita ali. Uma segunda constatação menos imediata é que quando vemos um comércio ou uma casa demolidos, sentimos um certo incômodo, tanto pela destruição em processo, que deixa visível os escombros, os materiais retorcidos das entranhas das construções, ou mesmo espaços que antes pertenciam à privacidade da família que ali habitava, como partes de banheiros e quartos; o incômodo se dá também pela perda de espaço habitual do lugar, que faz parte do dia a dia das pessoas, que são referências habituais da vida cotidiana. O terceiro aspecto do incômodo é o fato de, às vezes, ao notar a destruição, haver um receio do que virá a ser construído no local. Poderíamos desdobrar essa categoria dos incômodos da destruição/reconstrução do espaço, da destruição da paisagem habitual de espaços construídos no lugar da vida cotidiana.
Avançando na análise dos significados do processo de destruição/reconstrução do espaço na cidade, é preciso lembrar que no modo de produção capitalista há uma tendência a tornar tudo mercadoria e, neste momento histórico preciso, o espaço da cidade é demandado pelas estratégias de acumulação/valorização do capital financeiro hegemônico.
O espaço não é um produto qualquer, ele é o lugar de vida concreta de toda a sociedade
Embora o espaço urbano já seja uma mercadoria há mais de um século no Brasil (desde a Lei de Terras de 1850), neste momento do presente, a produção do espaço ganha força como mediação da valorização do capital. No entanto, o espaço não é um produto qualquer, ele é o lugar de vida concreta de toda a sociedade, que ao se reproduzir produz o seu espaço, com uma história concreta, com aspectos particulares, com paisagens específicas, o que confere um certo ritmo à vida cotidiana, além de conteúdos de uso do espaço próprios do lugar.
O específico do momento presente é a magnitude e a rapidez com que as destruições e reconstruções são realizadas.
Outra especificidade do espaço como mercadoria é que ele demanda de um tempo maior para se realizar, ele tem necessariamente uma permanência, o que, por sua vez, consolida uma paisagem definida por um conjunto de espaço construído com uma história determinada. Como contraponto à crítica do processo de destruição/reconstrução do espaço construído, poderíamos lembrar que o espaço e a paisagem não são estáticos, mas sempre foram objetos de modificações, ao longo da história, eles estão sempre em movimento. Entretanto, o específico do momento presente é a magnitude e a rapidez com que as destruições e reconstruções são realizadas.
Na cidade de João Pessoa, que vem sendo vendida nacionalmente como uma cidade com "qualidade de vida" e um lugar de turismo em ascensão, o mercado imobiliário é o setor econômico que está na vanguarda de toda essa transformação.
Nesse sentido, não é somente Manaíra ou os demais bairros da orla que estão em evidência enquanto produtos espaciais, mas toda a cidade se torna em grande medida uma mercadoria a ser vendida, o que impõe novos constrangimentos decisivos aos moradores da cidade, sobretudo aos mais pobres.
À medida que a cidade é tomada como campo de estratégias econômicas de agentes hegemônicos que dominam o campo das decisões políticas, a reprodução da vida das pessoas que nela habitam, assim como do espaço onde se vive, está atrelada ao processo de reprodução econômica. As propostas em vias de concretização da Revisão do Plano Diretor da cidade, assim como as iniciativas de grandes projetos urbanísticos de incentivo ao turismo (Polo Turístico Cabo Branco) ou ao próprio mercado imobiliário (Programa João Pessoa Sustentável) vão na direção de que a cidade como um todo se torna um campo de estratégias de reprodução econômica e não de avanço social.
Quando os lugares se tornam efêmeros e os lugares são tomados por novos momentos de valorização, grande parte da população da cidade, a parcela mais pobre, não terá condições de permanecer nela.
Na perspectiva hegemônica que domina os discursos governamentais, difunde-se a ideia de que com a intensificação da reprodução econômica com a indústria da construção e o setor de turismo com crescimentos espetaculares em grande parte pelos próprios incentivos estatais, haveria uma melhoria da vida da população com a produção de novos postos de trabalho e uma dinamização econômica virtuosa para toda a sociedade. Porém, sabemos que, pensando a produção do espaço, quando os lugares se tornam efêmeros e os lugares são tomados por novos momentos de valorização, grande parte da população da cidade, a parcela mais pobre, não terá condições de permanecer nela, pois o seu uso, inclusive (ou sobretudo) para moradia, estará ainda mais mediado pela lógica da mercadoria e não da necessidade de morar.
Um importante contraponto a esse movimento de destruição de parcelas do espaço construído, destruindo a história dos lugares e impondo novas relações pautadas cada vez mais na lógica da mercadoria (do dinheiro), são os movimentos sociais que lutam por necessidades concretas para a realização da vida urbana na cidade, a começar da luta pela moradia.
A Ocupação João Pedro Teixeira, organizada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas no edifício Nações Unidas no centro de João Pessoa, evidencia para toda a sociedade que a cidade pode ir em outra direção diferente da cidade pensada como mercadoria produzida pelos sujeitos econômicos hegemônicos. Evidencia que o centro da cidade pode ser lugar de moradia e de vida, que o espaço pode ser produzido também para o uso concreto do corpo e não somente para o uso mediado pelo valor de troca. Evidencia principalmente a contradição que está sendo aprofundada com o planejamento estatal entre a cidade para a reprodução econômica dos capitais hegemônicos, que segrega grande parte da sociedade que nela mora (as classes trabalhadoras pobres), e a cidade como o lugar da reprodução da vida em toda as suas possibilidades, como lugar não de dominação e controle, mas de apropriação para as necessidades concretas da vida.
*Rafael Faleiros de Padua é professor do Departamento de Geociências da UFPB, coordenador do Projeto de Extensão “Em busca do direito à cidade: ações e debates sobre as lutas urbanas” e participante do FERURB-PB.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
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Edição: Carolina Ferreira