Paraíba

Coluna

MORADIA POPULAR E O DIREITO À CIDADE: quando a cidade diz NÃO

Ocupação Macaíba - Jéssica Paixão
Campina Grande [...] marcada pela precariedade, de uma estrutura socioespacial segregada

Por Maria Jackeline Feitosa Carvalho*

 

 

Cidade(s) cindida(s), Campina Grande dividida?


"A favela é o quarto de despejo da cidade. Nós somos o lixo que eles jogam fora."


A frase acima origina o título do primeiro livro de Carolina Maria de Jesus -  “Quarto de despejo – o diário de uma favelada” (1960), e continua a trazer a marca, persistente, da negação à cidade a uma parte considerável desta. Exemplo do que se caracteriza e identifica enquanto condições sociais e de habitabilidade nos territórios populares em Campina Grande – Jardim Europa; Jardim Continental; Vila dos Teimosos, Ocupação do CSU; Ocupação do Distrito dos Mecânicos; Ocupação Macaíba; Araxá; Jeremias; Nossa Senhora Aparecida; Nova Brasília; Rosa Mística; Ocupação Luíz Gomes; Comunidade Arruda, dentre outros, surgem pela Campina Grande cindida: precariedade; fragilidade; desconhecimento de direitos. Tudo o que se constituí ‘fora do mapa da cidade; ausente de suas prioridades…’ parafraseando Carolina de Jesus, o ‘quarto de despejo da cidade’.

Historicamente, o reconhecimento dos pobres em Campina Grande e do direito à moradia, marca das desiguais cidades brasileiras, vai se dar pela sua negação com o  deslocamento para as áreas mais distantes e o avanço em seu entorno, do crescimento do número[1] de favelas e aglomerações urbanas desprovidas de infraestrutura. No passado o contraste mais notável foi a extinção de cortiços e áreas pobres do centro de Campina Grande, dentre as mais representativas: Maloca, Tamandaré e Coqueiros de José Rodrigues; todas estas áreas foram eliminadas para dar lugar a outras centralidades – a exemplo da construção do Parque do Açude Novo e o Parque do Povo. Em termos contemporâneos, observamos uma nítida referência e mudança de “significado interno e sentido histórico”, do que está a se consolidar como o “novo” desenho e classificação de periferização da pobreza urbana em Campina Grande.


A discussão da moradia se impõe, portanto, pelo destaque à heterogeneidade dos territórios populares como retrato de uma Campina Grande negada através do dimensionamento de espaços, igualmente pobres, que se apresentam em características muito diferentes ao que se produz (e reproduz) como condições e processos que se manifestam na cidade; ao introduzirem as paisagens (crescentes!) da precariedade habitacional em Campina Grande.


Que cidade é essa?


Espaços de tensões constituem a mudança de olhar sobre Campina Grande, expressa por ocupações provocadas pelas recentes transformações do seu solo urbano. É nesse prisma que se observa em Campina Grande a confluência de uma cidade, que corre em paralelo e se coloca para além da oficial; de uma ordem urbanística e ambiental marcada pela precariedade, de uma estrutura socioespacial segregada e com variações bastante significativas de diferentes localidades que compõem sua malha urbana, a qual a divisão aparente entre a cidade e suas partes se vincula, em uma intricada rede de relações de negações de direitos.

“Temos muitas dificuldades, né? Porque aqui falta é... aqui falta primeiro, que tá precisando, um esgoto é... não tem farmácia, não tem supermercado. E fica difícil pra gente, né? Se locomover daqui para ir para o Centro, para outro bairro, para conseguir alguma coisa....… Por aqui não tem escola. ... Aqui mesmo não tem não. …Posto de Saúde? .…Ah... minha filha, tantas coisas... Aqui tinha que ter escola, aqui tinha que ter farmácia, aqui tinha que ter supermercado, né? É... ônibus. rede de esgoto, né, que a gente não tem![2]


A fala acima reproduz no território a representação de uma cidade que diz NÃO, marcada por fortes contrastes de acessos e direitos. Ao partir destas condições, decorre a percepção dos pobres sobre a cidade: trajetórias e dificuldades que indicam a tensão entre modos, usos e interesses distintos, maneiras desiguais de viver a Campina Grande contemporânea.

Por outro lado, a ausência de uma política municipal de habitação[3] mobiliza a escolha da gestão em esconder, dispersar e omitir os pobres campinenses, mais do que os significados a eles atribuídos, se projeta o distanciamento[4] destes como espacialidades “invisíveis”, de uma cidade que diz NÃO. Distintas características que sustentam o contraste entre disputas — a cidade tecida e a cidade vendida.

Reside aí a dificuldade em trazer à cena os territórios populares de Campina Grande. Esta não é uma tarefa simples, em meio à quase inexistente política de enfrentamento às condições de sobrevivência nos territórios populares. Há um processo de desconhecimento de como tais territórios se (re)produzem na cidade. O que nos faz supor a ausência de prioridade da gestão em se construir políticas que tenham por foco o direito à cidade, aqui, deliberadamente condenado a uma (falsa) retórica ante o (proposital) esquecimento (político e ideológico) dos pobres urbanos; mais do que a sua  (real) efetiva ausência. Pois, eles existem e desafiam em suas formas de existir e resistir o mapa oficial da cidade!


A cartografia social é o mapa das ausências e emergências?


Assim, enquanto instrumento de garantia à possível superação desse quadro, sinalizamos a importância da elaboração de uma cartografia social no Município. Para além da geografia física de determinadas áreas da cidade, historicamente neglicenciadas em suas existências, inserir os territórios ausentes no mapa da cidade indica reconhecer a dimensão das emergências do direito à cidade a partir de uma compreensão que possa considerar a diversidade de problemáticas existentes nestes territórios e que se considere suas cartografias sociais. A saber:


A Interpretação da existência dos territórios populares:


Como se deu o surgimento do território? Quais os locais mais antigos ocupados e as principais mudanças ocorridas? Quais as dificuldades de permanência ? O que representa morar nestes territórios? Como defini-los, enquanto lugar de sentidos e pertencimentos? Quais os principais limites da área?”Quais as principais atividades econômicas existentes na comunidade? Em termos ambientais, que problemas se destacam na comunidade? Quais as ameaças e problemas que se identificam à permanência das famílias na área?”


 2º A relação dos territórios  com o entorno:

Que relações mantém com o entorno (trabalho, divertimentos, serviços públicos)? Quais os principais conflitos com a comunidade (agentes ou empreendimentos que estejam impactando a comunidade)? Como esses conflitos afetam a comunidade?”


Os riscos culturais às comunidades:

-Há alguma tradição e manifestação (religiosa, cultural, de terreiros)preservada? Onde se localizam? Como é vista a existência destes na comunidade?  Como a comunidade mantém a relação com esta tradição?


A Identificação dos  lugares sociais na comunidade:

-Escolas; terreiros; templos religiosos; Grupos Culturais; ONGs; Grupos de capoeira; Coco de Roda; Grupo de dança,..


A Organização e representação dos territórios:

-Mecanismos e meios para ampliar a participação e experiências de incidência política (Orçamento Participativo, Orçamento Democrático, Conselhos, Clube de Mães e Sociedades Amigas de Bairros - SAB's..).


Para finalizar, consideramos que a urgência da identificação e hierarquização da precariedade em Campina Grande, ao mesmo tempo, permita conhecer a emergência dos conteúdos sociais das populações que habitam os territórios Jardim Europa; Jardim Continental; Vila dos Teimosos, Ocupação do CSU; Ocupação do Distrito dos Mecânicos; Ocupação Macaíba; Araxá, Jeremias, Nossa Senhora Aparecida; Nova Brasília; Rosa Mística; Ocupação Luíz Gomes e comunidade Arruda, dentre outros.

Que a gestão futura, ao trazer as emergências desses territórios, construa um planejamento democrático de uma (real) valorização da escuta de quem vive a cidade em seu cotidiano como esforço coletivo de superar as ausências; para assim, conseguir construir políticas locais que possam de perto (re)conhecer os conteúdos sociais das populações que habitam esses territórios, priorizando-os enquanto espaços de MORADIA POPULAR E DE DIREITO À CIDADE.


"Sou forte, não me abato." "Parece que vim ao mundo predestinada a catar... Só não cato a felicidade."  (Carolina Maria de Jesus – Diário de Bitita, 1977).

 

Notas

[1]      Número esse subestimado pela ausência de dados, mais atualizados, sobre a precariedade na cidade; visto que o último levantamento se deu em 2001, quando da execução do Programa Habitar Brasil BID(HBB) em Campina Grande.
[2] Fala de uma moradora do Araxá – Pesquisa Pibic (2023).
[3] Cabe mencionar o esvaziamento e a paralisia que se encontram a Coordenadoria de Habitação(sem Coordenador/a desde o início da atual gestão) e o Sistema Municipal de Habitação de Interesse Social(Conselho desativado; Plano Municipal sem revisão; Fundo Municipal sem provisão orçamentária; tudo isso impossibilita a existência de uma agenda pública de direito à cidade).
[4]      A respeito disso, conferir : https://www.brasildefatopb.com.br/2024/05/02/o-programa-minha-casa-minha-vida-em-campina-grande-zerou-o-deficit-mas-nao-resolveu-o-problema-habitacional


*Cientista Política; Mestre e Doutora em Sociologia. Docente do Curso de Sociologia(UEPB);Pesquisadora do Observatório das Metrópoles(PB) e Líder do GEUR(UEPB). Constrói a Frente pelo Direito à Cidade de Campina Grande (PB).

Edição: Cida Alves