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Reflexões acerca da crise alimentar global

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Já são aproximadamente 282 milhões de pessoas, distribuídas em 59 países, que passam fome

Por Nádia Aun* e Alexandre Cesar Cunha Leite**

 

António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, na apresentação do Relatório Global sobre Crises Alimentares de 2024, enfatiza que o documento em questão deriva de um grande apanhado de falhas humanas. Guterres convida todas as nações, seus governos, governantes e cidadãos, a focar com mais empenho o combate à fome e à desnutrição no mundo.

Afinal, já são aproximadamente 282 milhões de pessoas, distribuídas em 59 países, que passam fome em nosso planeta. Desse total, 23 milhões (8%) são crianças abaixo de 5 anos. Os dados apurados são de 2023 e, em comparação a 2022, indicam um aumento de 24 milhões de pessoas vivendo em níveis elevados de insegurança alimentar, representando um aumento de aproximadamente 9%.

O documento formulado pelas Nações Unidas fala em insegurança alimentar aguda e crise alimentar e associa essas situações à necessidade de uma ação conjunta e imediata de todas as nações. A cooperação possui um único objetivo: buscar soluções para sanar a fome que assola esse enorme contingente populacional em escala global. Normalmente, a ajuda destinada às populações ou aos países em situação de insegurança alimentar e nutricional é oriunda de países que não estão inseridos no contexto da fome e dispõem de situação econômica estável.

Para que uma crise alimentar seja estabelecida é preciso que se observe a descontinuidade em pelo menos uma das dimensões relacionadas ao universo dos alimentos: a disponibilidade, o acesso, a utilização ou a estabilidade (de fornecimento, de produção, de acesso). Essas descontinuidades estão, na maioria das situações, relacionadas a ocorrências de crises e instabilidade econômica, crise ambiental e climática e conflitos armados. 

Dos fatores citados, aquele que mais contribuiu para o aumento de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda foram os conflitos armados. Para além das fatalidades que ocorrem durante um conflito armado, observa-se também que a duração prolongada desses eventos tende a afetar todo o funcionamento de um território. Geram destruição estrutural, mortes, e a insegurança tende a forçar deslocamentos populacionais em massa que buscam sobrevivência. Esse indicador isolado fala muito sobre as falhas humanas ou sobre o comportamento desumano que está estampado no relatório em questão. Em 2023, foram 20 países afetados por conflitos armados, comprometendo a vida de 135 milhões de pessoas. 

Segundo o relatório, crises econômicas afetam 21 dos 59 países onde houve coleta de dados sobre crise alimentar. Em 2023, foram cerca de 75 milhões de pessoas impactadas pela fome nessas nações, isso significa que 75 milhões de pessoas deixaram de ter acesso permanente a alimentos considerados essenciais para manutenção da saúde. 

Importante salientar que uma crise econômica não significa exatamente uma crise na produção de alimentos, mas na sua distribuição. Pessoas não conseguem ter acesso a alimentos que garantam sua segurança alimentar e nutricional. Crises econômicas, no geral, também estão diretamente conectadas à disputa de interesses, de poder e de território e, em sua grande maioria, acabam deteriorando as condições de vida da população, podendo inclusive, como consequência, gerar conflitos armados.

Já os eventos naturais ou eventos decorrentes das mudanças climáticas constituem a principal causa da fome em 18 dos 59 países analisados no relatório e afetam 77 milhões de pessoas. Nesse caso em particular, pode-se afirmar que crise alimentar e falta de alimentos estão diretamente associadas a problemas na produção de alimentos em decorrência de eventos climáticos extremos. E esse é um fator que requer muita atenção.

A tendência é vivenciarmos com mais frequência desastres localizados que, somados a tantos outros, podem gerar crises profundas de abastecimento alimentar de países inteiros. Nunca foi tão importante e necessário repensar o modo de produção de alimentos, não só pelo fato de que ele pode agravar a situação climática mundial, mas, principalmente, porque somos dependentes de comida. Esse indicador também nos mostra que é mandatório usar inteligência e estratégia (já disponíveis!) para ocupar espaços alternativos e usar técnicas diferenciadas que possam promover, no curto prazo, resultados dedicados à produção e ao abastecimento de alimentos.

O tamanho da crise alimentar que estamos vivendo hoje é proporcional à nossa incapacidade de cooperar e viver um desenvolvimento humano, social e inclusivo

No Brasil, os dados são menos alarmantes e é possível dizer hoje, em junho de 2024, que estamos na contramão do que esse relatório nos traz. Desde 2023, o governo federal retomou programas fundamentais para atenuar o problema da fome e da desnutrição. Os dados apresentados pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) indicam uma melhora nas condições das famílias desde que voltamos a integrar o mapa da fome em 2022. E, em 2023, já foi possível observar uma queda no nível de insegurança alimentar em relação a 2017, quando houve a última medição: 36,7% de domicílios afetados, em 2017, contra 27,6%, em 2023. 

Em metade (50,9%) dos domicílios com insegurança alimentar, o rendimento per capita era inferior a meio salário mínimo. Outro dado apurado pela PNAD em 2023 e divulgado pelo MDS é que, quanto menor a escolaridade, maior a chance de uma família apresentar insegurança alimentar. 

Dentre os domicílios brasileiros em insegurança alimentar em 2023, 8,9% estão em áreas urbanas e 12,7% em áreas rurais. Por mais paradoxal que essa informação possa parecer, é uma questão antiga, estrutural e demanda muita atenção. Em 2004, a insegurança alimentar em áreas rurais brasileiras era de 23,6%. Logo, o dado registra melhoria da condição dessa parcela populacional, apesar de o dado ainda indicar a necessidade de políticas direcionadas à melhoria de estrutura e de acesso aos alimentos. 

Ao ler o relatório fica claro que o maior gatilho para uma crise alimentar está nos conflitos gerados entre nações ou dentro de suas fronteiras. Normalmente, conflitos são seguidos ou precedidos por crises econômicas, dificultando o acesso a alimentos, a circulação de pessoas e mercadoria e a estabilidade de um ambiente doméstico. Em adição a tudo isso, temos observado a questão ambiental e climática que – dentro desse contexto de instabilidade política e financeira – contribui para a situação de insegurança alimentar.

O problema pode ficar mais complexo se olharmos para a questão da nutrição, pois além de simplesmente alimentar as pessoas é preciso garantir que elas estejam bem nutridas para evitar outros tipos de problemas, como o aumento da própria insegurança alimentar.

Nesse contexto, vale citar um artigo publicado pelo prof. José Giacomo Baccarin, no jornal da Unesp, em 5/10/2022 sobre a crise alimentar e alguns dos principais insumos que a alimentam em escala global. Ele finaliza o texto sustentando que seria importante atentar para duas situações: a primeira está relacionada às mudanças climáticas e seus efeitos sobre a produção de alimentos; a segunda situação refere-se à crescente hostilidade entre os países, criando um ambiente geopolítico instável e pouco propício à cooperação e às ações humanitárias. Citar esse trecho é uma forma de reafirmar e destacar que o tamanho da crise alimentar que estamos vivendo hoje é proporcional à nossa incapacidade de cooperar e viver um desenvolvimento humano, social e inclusivo.

Sendo assim, ainda que exista uma melhora nos dados em nosso país, frente aos números alarmantes apresentados pelo Relatório Global sobre Crises Alimentares em países como o Sudão do Sul, assolado por anos de guerra, definitivamente este não é um momento para comemorações. Vivemos uma retomada política que indica melhora, mas que sozinha não possui as ferramentas para sanar um problema antigo, simultaneamente estrutural e conjuntural: a fome em sociedades capitalistas. É preciso concordar com o que escreveu Guterres: o relatório nos traz, de fato, uma grande lista de falhas humanas. 

 

*Doutora em Ciência, Tecnologia e Inovação Agropecuária; realiza pós-graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional na UFPB. Membra do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (fomeri.org).

**Docente da Universidade Estadual da Paraíba, membro do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (fomeri.org) e criador da Cozinha Solidária SACIAR (@_saciar).

 


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Edição: Cida Alves