Paraíba

Coluna

Quem realmente pode ir e vir na cidade?

"As mulheres são ainda mais prejudicadas na lógica dos transportes coletivos insuficientes [...]." - Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.
Quem está envolvido no planejamento do transporte público em Campina Grande?

Por Bárbara S. Martins*

A cidade é uma obra coletiva, resultado das dinâmicas sociais, por isso, é inadmissível supor que o espaço urbano é neutro. O patriarcado, o racismo e o capitalismo compõem um sistema integrado de dominação que se sustenta através das estruturas políticas e institucionais, bem como do ordenamento urbano, resultando em cidades fortemente marcadas pela segregação espacial. Sendo assim, o espaço não é vivenciado das mesmas formas por todas as pessoas, pois os marcadores de classe, gênero e raça são determinantes na forma como cada um vive e se desloca pela cidade. 

A ideologia hegemônica dissemina concepções que definem a forma com a qual nos relacionamos uns com os outros e com o espaço. Não é à toa que apesar de 50,8% dos lares brasileiros serem chefiados por mulheres, são elas as mais afetadas pelo déficit habitacional e pela crise nos serviços públicos. Em um país profundamente racista e patriarcal, ser um corpo dissidente é estar constantemente em vulnerabilidade, suscetível a diversas formas de violência principalmente nos espaços públicos. 

Ainda que o país esteja engatinhando no quesito da efetivação de políticas públicas voltadas para mulheres, pessoas negras e LGBTQIAPN+, a própria infraestrutura urbana contribui fortemente para perpetuar desigualdades

Em cidades pensadas a partir da lógica do capital, a divisão sexual do trabalho gera, também, uma divisão sexual do espaço. Uma vez que este é estruturado para manter mulheres reclusas ao ambiente doméstico, impondo-lhes inúmeras barreiras físicas e simbólicas, que cerceiam não só a sua liberdade de circular pela cidade, mas também o seu acesso a direitos e oportunidades. Ainda que o país esteja engatinhando no quesito da efetivação de políticas públicas voltadas para mulheres, pessoas negras e LGBTQIAPN+, a própria infraestrutura urbana contribui fortemente para perpetuar desigualdades, já que a política urbana ainda é feita dentro de gabinetes e escritórios, uma concepção generalista do planejamento, que desconsidera as particularidades demográficas e territoriais, resultando em serviços, transportes, bairros e ruas inadequados para as necessidades dessa parcela da população. 

É de extrema importância pensar em gestões que promovam a integração entre os diferentes setores que incidem no município

A mobilidade urbana é um meio importante para efetivação do direito à cidade, pois é imprescindível para o desenvolvimento das demais atividades e para usufruto de direitos para além do trabalho, como o acesso aos equipamentos de saúde e lazer. Para que isso seja viável, é de extrema importância pensar em gestões que promovam a integração entre os diferentes setores que incidem no município, é preciso haver integração entre as políticas públicas urbanas para promover um desenvolvimento equilibrado. O direito de ir e vir é essencial para repensar não só um sistema de transporte público acessível e seguro, mas também uma cidade onde todos tenham as mesmas oportunidades para existir fora da vulnerabilidade.
 
A mobilidade urbana é um eixo fundamental para entendermos como essa segregação espacial se dá, já que literalmente é determinante para o acesso aos demais direitos e oportunidades na cidade, e adotar uma perspectiva interseccional como ferramenta analítica nos leva a duas questões fundamentais: Quem está envolvido no planejamento do transporte público em Campina Grande? Quem é afetado pelas decisões tomadas nesses espaços?  

Gestão após gestão, o transporte individual motorizado é beneficiado em detrimento do sistema de transporte público que segue o modelo de privatização a partir dos monopólios de empresas de transporte

No que se refere à legislação, o município cumpre a obrigatoriedade de elaborar Plano Diretor e Plano de Mobilidade Urbana (Plamob). Este último está alinhado com a Política Nacional de Mobilidade Urbana, baseada nos princípios democráticos da acessibilidade universal e desenvolvimento sustentável, destacando ainda a necessidade de integração com as outras políticas urbanas.

O Plamob de Campina Grande, instituído em 2015, segue a mesma tendência das leis e planos setoriais já elaborados no município, caracterizando-se como um texto repleto de boas intenções, feito para cumprir determinações do governo federal, reproduzindo seus objetivos e diretrizes sem, no entanto, efetivamente gerar ações concretas de intervenção na cidade. Pelo contrário: gestão após gestão, o transporte individual motorizado é beneficiado em detrimento do sistema de transporte público que segue o modelo de privatização a partir dos monopólios de empresas de transporte. A população, por sua vez, encara os valores abusivos das passagens de um transporte que é insuficiente para atender às suas necessidades. 

Em Campina Grande, muitas [mulheres] acabam optando por fazer seus percursos a pé, sobretudo, porque os ônibus não são suficientes para atender às suas demandas. [...] As nossas cidades não foram concebidas para as pessoas.

As mulheres são ainda mais prejudicadas na lógica dos transportes coletivos insuficientes, visto que a maioria não realiza o deslocamento pendular casa-trabalho, e sim deslocamentos complexos, em cadeia, já que não só estão inseridas no mercado de trabalho, o trabalho produtivo, mas também a elas é delegado o trabalho reprodutivo, do cuidado. O espaço e, principalmente, o tempo das mulheres é diferente ao dos homens, e o planejamento urbano, em suas diferentes áreas, é um catalisador das desigualdades não só de gênero, como de raça e classe.

Em Campina Grande, muitas acabam optando por fazer seus percursos a pé, sobretudo, porque os ônibus não são suficientes para atender às suas demandas. Em cidades pensadas para as pessoas, os deslocamentos a pé são desejáveis, assim como as bicicletas. Entretanto, as nossas cidades não foram concebidas para as pessoas. É preciso que o desenho urbano seja adaptado para priorizar a acessibilidade, assim como as redes de serviços devem privilegiar as relações de proximidades, levando em consideração os diferentes perfis que compõem a população e suas demandas específicas.

Em Campina Grande, as mulheres precisam se deslocar por distâncias acima do considerado “caminhável”, principalmente, porque as oportunidades de trabalho e serviços se concentram nas áreas mais centrais. Como se não fosse suficiente a questão do desconforto e desgaste físico e o tempo gastos nesses percursos, elas ainda ficam vulneráveis a diversas formas de assédio e violência a partir do momento que saem do ambiente doméstico. 


Representação dos deslocamentos realizados por mulheres trabalhadoras domésticas em Campina Grande, onde percebe-se a confluência para o centro da cidade / Foto: Acervo do Observatório das Metrópoles - Núcleo Paraíba/2023.

Onde essas pessoas se inserem nos processos de planejamento? Quais são as oportunidades oferecidas para que elas sejam ouvidas? 

Em um município onde 52,7% da população se identifica como mulher, onde elas estão? Em termos de democracia representativa, temos uma mulher negra vereadora entre 23 vereadores que atualmente ocupam a Câmara Municipal, sendo 16 deles homens. Se formos discutir democracia participativa, os espaços de participação social no município sofrem com descontinuidades: visto que não há interesse político em mantê-las, são poucas as instâncias em funcionamento, estando sempre suscetíveis a desativação conforme o poder vai mudando de grupo político.

Atualmente, temos o Conselho Municipal de Transportes Públicos de Campina Grande (COMUTP), onde apenas quatro dos 14 conselheiros são mulheres, três sendo representações da sociedade civil. No Conselho da Cidade (ConCidade), recentemente reativado em virtude da revisão do Plano Diretor, apenas nove entre os 39 conselheiros titulares são mulheres da sociedade civil. Essa falta de representatividade, somada à ausência de dados expressivos acerca de gênero, sexualidade e raça, relega as mulheres ao lugar dos que são afetados pelas decisões de planejamento que as tornam invisíveis. 

É preciso ocupar o campo político e garantir que cada vez mais vozes dissidentes tenham vez e voz nos espaços de decisão

Em ano de eleições municipais, muitos desafios se apresentam a nós. Em tempos de constantes ataques à democracia, os direitos dos grupos que estão à margem são os primeiros a serem ameaçados. E ainda que os cargos do executivo recebam maior atenção, devemos eleger cuidadosamente quem ocupará os cargos do legislativo, responsáveis por discutir e votar matérias que dizem respeito ao planejamento urbano. É preciso ocupar o campo político e garantir que cada vez mais vozes dissidentes tenham vez e voz nos espaços de decisão, para que aí, sim, seja possível pensar em um rompimento com as práticas hegemônicas de planejamento e do fazer político. 

Incorporar as lutas das mulheres à agenda política é incorporar a luta pelo direito à cidade e pelo exercício pleno da cidadania não só de mulheres, mas de todo grupo subalternizado. É importante estarmos engajados na tarefa de (re)construir a democracia que consiste, para além do voto, no processo de consolidação e manutenção dos espaços de participação, onde seja possível debater e formular novas políticas e, principalmente, deliberar sobre os caminhos do desenvolvimento urbano de forma a pensar em uma agenda que esteja alinhada aos nossos anseios e necessidades. 
Uma cidade tecida a partir da trama do ir e vir das mulheres é uma cidade justa e democrática para todas, todos e todes. 

*Bárbara S. Martins é graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). É pesquisadora do Núcleo Paraíba do INCT Observatório das Metrópoles e integrante da Frente pelo Direito à Cidade de Campina Grande. 

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

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Edição: Carolina Ferreira