Paraíba

Coluna

A greve nacional docente e a grave crise da educação superior brasileira

Marcha da Classe Trabalhadora, que aconteceu em 22 de maio de 2024. - Foto: ANDES-SN.
a contratação de docentes negros [...] continua reduzida

Por Mojana Vargas*

Estamos chegando ao fim de uma imensa paralisação na educação superior brasileira. Desde abril de 2024, servidores técnico-administrativos (TAEs) e docentes das universidades e dos institutos técnicos e tecnológicos federais interromperam suas atividades em meio à negociação da pauta de reivindicações com o governo federal.

TAEs e docentes, representados por seus respectivos sindicatos¹ vinham negociando com a representação do governo federal desde o segundo semestre de 2023, com a segunda mesa de negociação ocorrida em setembro daquele ano. Na pauta dos TAEs, esteve a reestruturação da carreira (com a aprovação do Plano de Carreira dos Cargos dos Técnico-administrativos em Educação-PCCTAE) e a recomposição salarial. Docentes reivindicavam um índice de 22,71% a título de recomposição salarial, a equiparação entre ativos e aposentados nessa correção salarial, e a revogação de uma série de Instruções Normativas editadas durante o governo Bolsonaro para obstaculizar as progressões na carreira, ampliar a carga horária dos docentes EBTT e para limitar a atividade sindical, particularmente as IN 66/2022 e a IN 49/2023.

A recomposição do orçamento das universidades e dos institutos federais também era um ponto importante das reivindicações, uma vez que muitas instituições têm enfrentado dificuldades para manter suas atividades cotidianas e perdido a capacidade de investir em ampliação e melhoria de infraestrutura, devido à redução contínua das verbas repassadas pelo governo federal desde 2016. A estimativa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes)² é que as universidades federais precisariam de um repasse de R$ 8 bilhões para garantir o funcionamento das universidades em 2024.
 
Iniciada em 15 de abril de 2024, a greve chegou a 62 universidades e um número ainda maior de institutos federais. O movimento adquiriu grande expressão política, unindo servidores técnicos e docentes em torno da valorização dos profissionais do ensino superior e da defesa da educação pública. A grande adesão de instituições também foi uma resposta da categoria ao crescente endurecimento dos representantes do governo ao longo do processo de negociação, com a recusa das sucessivas propostas e contrapropostas apresentadas pelos sindicatos na Mesa Nacional de Negociação Permanente (MNNP) tanto para as reivindicações remuneratórias quanto para reivindicações sem impacto orçamentário.


Professora Mojana, autora deste artigo, durante a mobilização das/dos docentes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). / Foto: ADUFPB.

A questão central opondo o governo e o movimento grevista foi a disputa pelos fundos públicos, ou seja, pela parcela do orçamento federal a ser investido nas universidades e institutos federais. Apesar dos avanços em diversas pautas sociais importantes, o governo Lula continua preso à lógica da austeridade estabelecida pelo chamado arcabouço fiscal e ao pagamento dos serviços da dívida pública, repassando cerca de 40% do orçamento anual aos rentistas especuladores que se beneficiam dos juros altos. Apesar do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB)³, prevalece a tendência de reduzir o financiamento de serviços públicos fundamentais como saúde e educação em benefício do setor financeiro. A consequência foi a agressividade da resposta governamental ao movimento. 

Prova disso foi a reunião promovida pelo presidente Lula, seu Ministro da Educação e Ministra da Ciência e Tecnologia – Camilo Santana e Luciana Santos, respectivamente – com os dirigentes das universidades e institutos federais, ocorrida em Brasília no dia 10 de junho (quando o movimento estava prestes a completar 60 dias). Anunciada com grande pompa pela comunicação governamental com o objetivo de “encerrar a greve”, a reunião ocorreu após a Justiça Federal em Sergipe ter cassado o acordo assinado dias antes entre o Ministério da Gestão e Inovação (MGI) e o Proifes⁴.  

Em uma tentativa desesperada de isolar o movimento sindical, o presidente e seus ministros listaram ações adotadas para as universidades e anunciaram o Novo PAC. No final, teve destaque a “recomposição do orçamento das universidades”, com o repasse de R$ 400 milhões, valor irrisório frente ao solicitados pelo Andifes. Pior, em sua fala, o presidente quis utilizar de uma suposta autoridade conferida por seu passado como sindicalista, para tentar “convencer” os sindicatos – que aliás, não foram convidados para a tal reunião – a desistir da greve e aceitar a proposta governamental, considerada irrecusável pelo presidente. O presidente, que mantém o discurso de valorização da educação e do ensino superior, parece ignorar que essa valorização passa pelo salário dos docentes. A defasagem atual dos salários docentes chega a 27%, então, a oferta de 12,5% em três parcelas não cobre sequer metade das perdas já acumuladas e não pode ser chamada honestamente de recomposição salarial. A título de comparação, a Polícia Rodoviária Federal teve aumento de 27,48% a partir de 2024, enquanto o oferecido para os docentes em 2024 é a curiosa cifra de 0%. 

A disputa salarial e orçamentária protagonizada por docentes e reitores é uma parte importante do cenário problemático das universidades federais, mas esse desenho ganha contornos ainda mais dramáticos ao analisarmos alguns fatores mais específicos.

A perda de financiamento público pelas universidades afeta a todos, mas não da mesma maneira. As políticas de permanência estudantil não são direcionadas especificamente para os estudantes cotistas, o que implica que estes – na média com renda mais baixa – devem disputar a fatia cada vez menor de recursos disponíveis para a assistência estudantil.

As universidades e institutos federais mudaram. Hoje, metade das vagas nessas instituições são ocupadas por estudantes oriundos do ensino público, grande parte deles com renda familiar per-capita de até 1,5 salário mínimo, entre os quais, parte considerável é também autodeclarada preta, parda ou indígena, os cotistas. Isso significa mais pressão sobre os mecanismos de permanência estudantil nas universidades, custeados basicamente por fundos de programas universais como o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES)⁵. Os programas institucionais de bolsas para ensino e pesquisa também recebem maior demanda, mas o volume de recursos não foi ampliado. A perda de financiamento público pelas universidades afeta a todos, mas não da mesma maneira. As políticas de permanência estudantil não são direcionadas especificamente para os estudantes cotistas, o que implica que estes – na média com renda mais baixa – devem disputar a fatia cada vez menor de recursos disponíveis para a assistência estudantil.


Marcha da Classe Trabalhadora 2024. / Foto: ANDES-SN.

A correlação de forças na estrutura burocrática das universidades é profundamente marcada pelo racismo institucionalizado que cria obstáculos cotidianos para qualquer avanço na luta antirracista.

O mesmo pode ser dito sobre outras categorias de políticas afirmativas nas universidades. Com o enxugamento orçamentário, todas as políticas institucionais consideradas secundárias são interrompidas, e quando se trata de políticas e ações institucionais de promoção de igualdade racial, essas costumam ser as primeiras da lista. A correlação de forças na estrutura burocrática das universidades é profundamente marcada pelo racismo institucionalizado que cria obstáculos cotidianos para qualquer avanço na luta antirracista. Exemplo disso é o reduzidíssimo avanço do cumprimento das leis 10.639/03 e 11.645/08 nas universidades ou o fato dos NEABs não constarem com dotação orçamentária específica e infraestrutura que garanta o seu funcionamento. A educação étnico-racial patina em todos os âmbitos e a contratação de docentes negros, após mais de uma década da reserva de vagas em concursos públicos, continua reduzida. Com o corte de verbas, não há abertura de novas vagas e quando isso ocorre, as áreas ligadas às relações étnico-raciais costumam ser preteridas.  

A greve docente de 2024 nos deu a oportunidade de debater sobre a importância de se manter o investimento público na educação superior, entretanto, ainda não fomos capazes, enquanto categoria, de associar a discussão salarial e orçamentária – que são absolutamente necessárias – a uma avaliação sobre a desigualdade na distribuição interna dos recursos como uma reprodução das desigualdades sociais e raciais que vivenciamos em nosso ambiente social. Isso implica na precarização da assistência estudantil e no atraso das políticas afirmativas, mas também na crescente dependência que os docentes sentem de buscar bolsas e financiamentos adicionais para realizarem seus projetos de pesquisa. Pior ainda, nos torna incapazes de forjar alianças internas entre docentes, técnicos e estudantes e de reforçar a percepção de que as universidades são socialmente importantes exatamente entre aqueles segmentos que, mesmo não fazendo parte desse universo, não devem estar apartados dele.

Para saber mais

ANDES. Universidade, ciência e classe numa era de crises. São Paulo: Expressão Popular, 2020.
ANTONIO NETO. Trabalhadores do Brasil: uma história do movimento sindical. São Paulo: Cone Editora, 2007.
NAVARRO, Vera Lucia; LOURENÇO, Edvânia Ângela de S. (Orgs.). O avesso do trabalho 4 – Terceirização: precarização e adoecimento no mundo do trabalho. São Paulo: Outras Expressões, 2017.

Notas

¹ Devido a especificidades da constituição histórica das carreiras e da natureza de cada instituição, a representação sindical não manteve o padrão unitário que existe em outras categorias. Os TAEs e os docentes do ensino técnico e tecnológico federal são representados nacionalmente por duas organizações (SINASEFE e FASUBRA), enquanto os docentes das universidades federais são representados pelo ANDES-SN.

² Nota da Andifes sobre o orçamento das universidades federais de 2024

³ O PIB brasileiro acumulou 2,5% de crescimento no primeiro trimestre de 2024, chegando a R$ 2,7 trilhões nesse período.

⁴ Entidade surgida em 2012 como dissidência do movimento sindical docente e que representa cerca de 15% dos docentes das universidades federais.

⁵ O PNAES atual foi transformado na Política Nacional de Assistência Estudantil, por meio do projeto de lei 5395/2023, aprovado no plenário do Senado Federal em 11/06/2024. O projeto está aguardando sanção presidencial. Leia: Política Nacional de Assistência Estudantil vai ao Plenário. Fonte: Agência Senado.

*Mojana Vargas é doutora em Estudos Africanos pelo ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa). Professora do Departamento de Relações Internacionais da UFPB. Coordenadora do NEABI/UFPB. Fez parte do comando de greve da ADUFPB.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

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Edição: Carolina Ferreira