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Coluna

Acesso humano à água: por que precisamos falar sobre intermitência?

"Será que a existência de uma torneira é suficiente para a garantia de um acesso à água com qualidade e quantidade adequadas?" - Foto: Agência Brasil/EBC.
Em 2022, ocorreram 432,9 mil interrupções sistemáticas nos serviços de abastecimento de água

Por Diego Souza de Oliveira* e Carlos de Oliveira Galvão**

Há um entendimento da sociedade de que os problemas de acesso à água estão associados apenas à ausência de água encanada. Há dados alarmantes, da Organização das Nações Unidas (ONU), da existência de 2 bilhões de pessoas sem acesso à água potável no mundo, com projeção de aumento para 2,4 bilhões até 2050. Os problemas de acesso à água potável em quantidade e qualidade adequadas também atingem aquelas pessoas que já estão conectadas às redes de abastecimento. São aqueles ocasionados pela intermitência no fornecimento de água e problemas na infraestrutura.

No Brasil, de acordo com os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em 2022, cerca de 30,7 milhões de habitantes não têm acesso à água encanada, sendo a maior porcentagem desses casos ocorrendo nas regiões Norte (35,8%) e Nordeste (23,1%). No entanto, será que os problemas de acesso à água estão associados apenas à ausência de água encanada? Será que a existência de uma torneira é suficiente para a garantia de um acesso à água com qualidade e quantidade adequadas? 

Ainda sobre os dados do SNIS, no Brasil, em 2022, ocorreram 432,9 mil interrupções sistemáticas nos serviços de abastecimento de água, também chamadas de intermitências. Essas interrupções ocasionam faltas de água nos domicílios e outros pontos de abastecimento. São causadas por dificuldades de produção de água, manobras no sistema e subdimensionamento das infraestruturas de distribuição. Em 2022, 312,5 milhões dessas faltas de água ocorreram no país, sendo 91,5% delas (286 milhões) na região Nordeste. Portanto, a existência da infraestrutura de abastecimento não garante o acesso à água 24 horas por dia.    

Determinadas regiões, em função da sua localização e da condição social das pessoas, acabam tendo mais dificuldades no acesso à água.

Muitos sistemas de abastecimento de água no Brasil operam com intermitência, uma característica de sistemas em países em desenvolvimento. A intermitência é agravada por deficiências do sistema de abastecimento quando afetado por fatores geográficos: em algumas localidades em função da altitude, o sistema não apresenta pressão suficiente para o fornecimento de água; às regiões periféricas e mais afastadas do centro das cidades normalmente apresentam um sistema com déficits de atendimento e fornecimento de água. É possível perceber dentro das cidades que determinadas regiões, em função da sua localização e da condição social das pessoas, acabam tendo mais dificuldades no acesso à água, passando por dias e até semanas sem serem abastecidas.

O questionamento que deve ser feito é: por que o Estado consegue garantir água para os condomínios horizontais e edifícios verticais (com volumes consideráveis), que constantemente são construídos nas cidades, e as localidades mais periféricas não têm a mesma facilidade nesse fornecimento?

A existência de sistemas intermitentes faz com que as pessoas precisem se adaptar e busquem soluções para conviver com a intermitência. Essa capacidade de adaptação está associada a fatores socioeconômicos, na qual algumas pessoas podem armazenar água em reservatórios com grandes capacidades de volume como caixas de água e cisternas, enquanto outras pessoas utilizam baldes e garrafas pets. A necessidade de armazenamento de água expõe as pessoas a problemas de quantidade insuficiente, devido à baixa capacidade de armazenamento, e problemas de qualidade como a contaminação da água por um armazenamento inadequado ou pela falta de manutenção e limpeza dos reservatórios. 

Um problema associado a essas adaptações individuais é a transferência da responsabilidade do abastecimento para o indivíduo, tendo como consequência a impossibilidade de controle e da garantia da qualidade no acesso à água, expondo as pessoas a situações de maior vulnerabilidade. Deve-se destacar a importância dos sistemas de abastecimento coletivo, em bom funcionamento, na garantia de um acesso à água seguro, pois nesses sistemas é possível controle e fiscalização, para segurança da quantidade e qualidade adequadas. Portanto, nas ações para reduzir a intermitência, as pessoas e localidades mais vulneráveis, com baixa capacidade de adaptação, devem ser priorizadas.

Em Campina Grande (PB), algumas localidades ainda enfrentam dificuldades no acesso à água, principalmente as regiões mais periféricas e que foram sendo construídas nas zonas de expansão. Recentemente a região passou por uma crise hídrica, afetando o abastecimento da cidade, sendo necessária a implementação de racionamento e rodízio de água. Em situações de crise ficam ainda mais nítidas as situações de desigualdades no acesso à água e os problemas da intermitência são agravados. Algumas regiões não têm suas rotinas afetadas ou apresentam mudanças muito sutis, enquanto que outras acabam sofrendo um maior impacto, precisando recorrer a fontes alternativas (nem sempre seguras) para conseguir desenvolver as atividades básicas. É importante ressaltar que essas fontes alternativas são pagas, e que nessas situações acabam tendo o seu valor elevado, impactando os mais vulneráveis economicamente, que são forçados a recorrer a situações mais inseguras.

O acesso a água adequado deve acontecer 24h por dia em quantidade e qualidade satisfatórias.

As pessoas são submetidas a condições de alta precariedade do sistema que qualquer melhoria, mesmo que não seja a ideal, é entendida como sendo uma grande mudança, contribuindo para a naturalização do problema. É muito comum pessoas que não têm acesso a água 24h por dia, afirmarem que não existem problemas quanto ao seu acesso. Isso acontece porque antes estavam submetidas a condições em que tinham que buscar água em locais distantes ou recebiam água uma vez por mês, e hoje elas têm água encanada, abastecida semanalmente. Lembrando que o acesso a água adequado deve acontecer 24h por dia em quantidade e qualidade satisfatórias.

O histórico de intermitência acaba gerando uma cultura na forma como a água é utilizada dentro das residências, como é o caso da utilização da caixa de água. Mesmo com a melhoria do sistema, a utilização da caixa de água ainda é muito presente, sendo entendida como um elemento essencial em qualquer residência. A existência da caixa de água faz com que as pessoas não percebam o problema da intermitência e contribua para a naturalização do problema. Apesar da caixa de água hoje ser um elemento importante, em um sistema funcionando de forma satisfatória ela não seria necessária. 

A intermitência também é naturalizada pelos gestores, onde os mesmos não priorizam a solução do problema, assumindo a intermitência como parte do sistema. Ao longo do tempo, as pessoas vêm “dando seu jeito” e, na teoria, esse jeito vem dando certo. Mas quem tem capacidade de “dar o seu jeito”? Portanto, os governantes, as agências reguladoras e os prestadores de serviços de saneamento devem entender a intermitência como um problema a ser solucionado, para a garantia do acesso à água de forma segura para todos. Devem ser feitos investimentos na infraestrutura e operação do sistema, realizando ações concretas para o fornecimento de água 24h/dia em qualidade e quantidade adequadas.

Referências

ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (2023). The United Nations World Water Development Report 2023: Partnerships and Cooperation for Water. UNESCO, Paris.

SNIS - SISTEMA NACIONAL DE INFORMAÇÕES SOBRE SANEAMENTO (2022). Diagnóstico Temático, Serviços de Água e Esgoto. SNIS, Brasília, 56 p.

*Diego Souza de Oliveira é engenheiro civil. Doutorando em Engenharia Civil e Ambiental na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Pesquisador do Observatório das Metrópoles - Núcleo Paraíba.

**Carlos de Oliveira Galvão é engenheiro civil. Professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Pesquisador do Observatório das Metrópoles - Núcleo Paraíba.

***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

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Edição: Carolina Ferreira