Paraíba

Coluna

João Pessoa: uma cidade na contramão do desenvolvimento urbano sustentável

Comunidades São Rafael (à esquerda) e Padre Hildon Bandeira (à direita), em João Pessoa. - Foto: Instituto Voz Popular.
O que, de fato, caracteriza a sustentabilidade na cidade de João Pessoa?

Por Alexandre Sabino do Nascimento* e Paula Dieb Martins**

Atualmente, o maior desafio que a humanidade enfrenta é encontrar maneiras de satisfazer as necessidades fundamentais de todos, considerando as restrições de recursos naturais do planeta. Tais necessidades se realizam cada vez mais no espaço urbano, assim como tem sido mais frequente a ocorrência de eventos relacionados às mudanças climáticas em diferentes realidades urbanas do mundo. Inundações, ondas de calor, deslizamentos, escassez de água, por exemplo, são consequências, sobretudo, da forma como têm sido explorados os recursos naturais pelo homem nos últimos séculos: sem a observância de princípios ambientais básicos. Diante desse quadro, entende-se que o modo e a qualidade de vida nas cidades devem ser profundamente repensados e refletidos à luz do atual salto tecnológico e dos limites do desenvolvimento sustentável.

Nas últimas décadas, o desenvolvimento sustentável, entendido como modelo de desenvolvimento que envolve de forma sistêmica e equilibrada os aspectos político, econômico, social e ambiental, tem sido colocado como meta a ser atingida em instrumentos legais, debates e eventos políticos, práticas corporativas e institucionais. A ONU-Habitat tem ampliado seu foco nas questões relacionadas à degradação ambiental decorrente do rápido crescimento das cidades, fato que repercute em um processo crescente de injustiça climática que ocorre com a distribuição socialmente desigual dos riscos climáticos globais.

Nesse âmbito, destacam-se a formulação de estratégias urbanas plasmadas nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, sobretudo no ODS n° 11, o qual reforça o compromisso inequívoco de estabelecer assentamentos humanos inclusivos, seguros e sustentáveis, enquanto garante equidade, participação e acesso adequado à moradia; e, também, a Nova Agenda Urbana que, aprovada após a Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III), em 2016, aprofundou esses ideais, ao realçar a intrincada conexão entre planejamento urbano, inclusão social e sustentabilidade.

No entanto, o que tem se observado de forma dominante no meio urbano é a reprodução de práticas como o desmatamento e a impermeabilização de grandes áreas de solo, o aumento de emissão de gases poluentes e o descarte de resíduos em corpos hídricos -, contribuindo para a formação de ilhas de calor, poluição dos rios, produção de gases tóxicos, perda de biodiversidade e problemas de saúde, assim como aumentando a suscetibilidade do espaço urbano a eventos catastróficos. 

Faz-se necessário, portanto, questionar não apenas as práticas recentes de planejamento urbano e ambiental, os quais norteiam o processo de uso e ocupação do espaço - definindo as áreas a serem ocupadas, assim como os parâmetros e índices a serem respeitados pelo ambiente construído -, mas também as intervenções urbanas, ou seja, projetos urbanos empreendidos pelo poder público em áreas de reconhecido valor ambiental na cidade. Destacam-se as alterações nas legislações urbanas e ambientais visando a maior permissividade de atuação da construção civil em áreas de restrição ambiental, e os projetos urbanos em parques e orlas marítimas ou fluviais voltados para a promoção imobiliária de determinados setores da cidade. 

Nesse contexto, a Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP) tem procurado, aparentemente, demonstrar sua adesão à busca por um desenvolvimento urbano sustentável por meio do Programa João Pessoa Sustentável (PJPS) e da revisão do novo Plano Diretor (Lei Complementar nº 164/2024) e suas legislações correlatas e complementares, a exemplo da Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS) (Lei Complementar n° 166/2024).

'O Projeto de Lei de Uso e Ocupação do Solo também traz em seu bojo a proposta de utilização dos novos instrumentos da concessão urbanística para estimular a criatividade do setor privado na ocupação diferenciada de porções estratégicas do território municipal'. É sobre esse estímulo que este artigo busca refletir

Contudo, acredita-se que os interesses são outros, como apontou a Mensagem n° 071/2023, enviada do Gabinete da Prefeitura para a Câmara Municipal junto ao Projeto de Lei Complementar sobre a LUOS: “O Projeto de Lei de Uso e Ocupação do Solo também traz em seu bojo a proposta de utilização dos novos instrumentos da concessão urbanística para estimular a criatividade do setor privado na ocupação diferenciada de porções estratégicas do território municipal”. É sobre esse estímulo que este artigo busca refletir, pois acredita-se que o mesmo segue na contramão não apenas dos princípios do desenvolvimento sustentável, mas do direito à cidade e da justiça social e ambiental.

O PJPS resulta de uma parceria da PMJP com a Caixa Econômica Federal e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Tal programa envolve uma série de projetos e ações financiados pelas referidas instituições e localizados em determinadas áreas de João Pessoa, e representa a primeira grande operação de crédito externo realizada em João Pessoa. 

Dentre as ações ligadas a esse programa, merece destaque o projeto de requalificação urbana e ambiental que contempla a criação do Parque Linear do rio Jaguaribe, o qual abrange uma extensão de 2,5 km de área verde ao longo das margens desse rio. Os documentos e discursos ligados à sua implementação apontam a importância para preservação das margens fluviais nas proximidades das comunidades da Beira Rio, a exemplo da São Rafael, a prevenção de inundações e a dissuasão de novas ocupações irregulares (Sousa Neto & Nascimento, 2020), mas calam quanto ao objetivo acordado com o BID de valorizar os imóveis da área em 30%, e sobre sua situação dentro do novo zoneamento da cidade que permitirá novos usos e ocupações do solo em parceria com a iniciativa privada.

A prefeitura [PMJP] e a equipe executora do programa vêm planejando a remoção de cerca de 900 famílias que habitam parte das margens do rio Jaguaribe

A criação do citado parque linear se processa via ações orquestradas no PJPS, em que a prefeitura e a equipe executora do programa vêm planejando a remoção de cerca de 900 famílias que habitam parte das margens do rio Jaguaribe sob a justificativa de que residem em uma área de risco e poderão desfrutar de uma qualidade de vida superior nos conjuntos habitacionais construídos em áreas próximas, que também apresentam fragilidades ambientais e não foram negociadas com as comunidades atingidas. Ressalta-se que as comunidades citadas são Zonas Especiais de Interesse Social, o que reforça que tais processos segregativos e de ampliação de desigualdade vivenciados por esses territórios se chocam com a efetivação de processos ligados aos ideais da reforma urbana e do Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257/2001).

Em entrevistas realizadas pela mídia local e redes sociais das comunidades observa-se que, ainda que alguns residentes estejam sujeitos a riscos ambientais, a maior parte deles não se declara em perigo e anseia que os executores do PJPS apresentem soluções alternativas à remoção, garantindo assim o seu direito como cidadãos. Não foram dadas opções de escolhas como a de permanecer no seu território com melhores condições de vida e um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado como direito presente em nossa constituição. A maioria desses moradores ocupa há décadas tais territórios e sempre foi excluída de um planejamento urbano e ambiental que respeitasse seus direitos. 

 'João Pessoa sustentável para quem?'

Diante da situação, emergiu um movimento de protesto e resistência ao projeto do Parque Linear do rio Jaguaribe por parte da comunidade atingida, tendo como uma das indagações: “João Pessoa sustentável para quem?”. Tal questionamento, por sua vez, suscita outras perguntas, como: O que, de fato, caracteriza a sustentabilidade na cidade de João Pessoa? A implementação dos parques e áreas verdes obedecem aos princípios da sustentabilidade ou do mercado imobiliário? O PJPS, orienta as transformações urbanas de João Pessoa no sentido de um desenvolvimento urbano sustentável e justo socioambientalmente, ou na contramão de tais princípios e objetivos?

O Novo Plano Diretor, cuja revisão foi realizada entre os anos de 2021 e 2023, consiste na alteração da legislação urbana que norteia o uso e a ocupação do espaço urbano de João Pessoa. Realizada de acordo com ações indicadas no PJPS, a revisão do documento alterou não só o texto do Plano Diretor, como envolveu a criação de novos marcos regulatórios - como a LUOS e a Lei do Sistema Viário Básico (Lei Ordinária nº 15.197/2024), assim como minutas de leis enviadas pelo executivo para a análise e votação na Câmara Municipal, a exemplo dos Projetos de Lei: Código do Meio Ambiente, Código de Obras e Edificações, Parcelamento do Solo, entre outros. Todos eles se colocam como fundamentais para a construção de uma cidade dita sustentável, mais justa e menos desigual, mas o que se revela com sua breve análise é que eles seguem o sentido oposto. 

Como destaque, pode-se citar a LUOS de João Pessoa, a qual define o macrozoneamento e zoneamento de uso e ocupação do solo do município, ou seja, estabelece o que pode ser construído e quais regras a serem seguidas em cada área da cidade. Nessa lei, a mercantilização predatória do espaço urbano se consolida via ampliação de parâmetros como o índice de aproveitamento (IA), ou seja, da quantidade de área passível de ser construída por lote em setores dantes protegidos minimamente do avanço do mercado imobiliário. Tem-se, por exemplo, a concessão de IA para áreas estratégicas de preservação e conservação de recursos naturais como na Macrozona de Proteção Ambiental e Macrozona de Baixa Densidade. 

Além disso, o texto da LUOS abre caminho para articulações público-privadas com o suposto interesse de garantir a preservação ambiental via delimitação de setores especiais com índices de aproveitamento máximo diferentes daqueles estabelecidos na própria lei. Tal fato sinaliza uma “boiada” urbanística (Miranda et al, 2022) e ambiental que permitirá a possível devastação de amplos espaços da cidade. Daí a criação do Setor Especial de Áreas Verdes (SEAV) (Art. 36) que surge com preponderância sobre o zoneamento municipal, inclusive sobre o Plano Diretor. Tal setor, segundo o texto da lei, tem por objetivo garantir o desenvolvimento, a utilização destas áreas, a preservação ambiental e a recuperação de áreas degradadas em parceria com a iniciativa privada. Eis a cereja do bolo: entrega-se para a iniciativa privada áreas ambientalmente frágeis ou que servem como amortecimento, contenção ou transição em relação a locais mais consolidados. Tais setores, que possuem relevância ecológica e paisagística, precisam ser resguardadas e não terem os índices construtivos flexibilizados e/ou aumentados através da atuação do setor imobiliário, pois tratam-se de bens comuns da sociedade.

E não para por aí. No quesito da injustiça socioambiental, aponta-se que grande parte da margem do rio Jaguaribe, ao lado da avenida José Américo de Almeida (Beira Rio) - que hoje abriga comunidades a serem removidas com o argumento de serem áreas de risco, como mencionado anteriormente - foi classificado pela LUOS como um SEAV. Desse modo, territórios marcados por iniquidades, segregação e injustiças sociais e ambientais, aos quais foram negadas historicamente infraestruturas básicas, regularização fundiária e urbanização serão convertidos em áreas com alta permissividade construtiva para ação do mercado imobiliário. Isto pode acarretar um processo de gentrificação verde (Sousa Neto & Nascimento, 2020), pois induz a mudança de perfil socioeconômico dos moradores atuais da região da avenida Beira Rio via valorização imobiliária potencial da região.

Dentre os instrumentos jurídicos e urbanísticos no Novo Plano Diretor, destaca-se um novo instrumento de indução ao desenvolvimento urbano - o Território de Estruturação e Requalificação (TER) - que permite definir áreas que se sobrepõem ao zoneamento de uso e ocupação do solo, representando a criação de regiões ou zonas que flexibilizam aspectos construtivos de acordo com os interesses de grupos ligados aos setores da construção civil e mercado imobiliário, inclusive em áreas como a Mata do Buraquinho e a Ilha do Bispo. Desse modo, os instrumentos mencionados representam um sério risco à possibilidade de construção de uma cidade mais justa social e ambientalmente, pois representam interesses dos setores que mais têm contribuído para o quadro de insustentabilidade da cidade (Nascimento & Araújo, 2024).
 
Por outro lado, os instrumentos ligados à democratização da gestão urbana e à regularização fundiária tiveram um retrocesso no texto da nova legislação urbana, apesar de possuírem relevância dentro do presente quadro de transição ecológica motivado pelas mudanças climáticas vivenciadas mundialmente, estando também diretamente relacionados com a redução das desigualdades e injustiças sociais. Temos como saldo das recentes mudanças legais no planejamento e gestão urbana e ambientais da cidade a criação de um zoneamento que favorece a completa dominação do uso e ocupação do solo pelo mercado e de instrumentos urbanísticos e jurídicos que demarcam, flexibilizam e transformam o meio ambiente urbano em pura moeda de troca no mercado imobiliário capitaneado pela prefeitura e os amigos do rei. 

Um relevante requisito na busca do desenvolvimento sustentável, mas ignorado pelas gestões de João Pessoa, consiste no planejamento local e participativo, envolvendo as comunidades e autoridades locais, assim como as associações de cidadãos envolvidos na proteção/utilização da área, em uma “abordagem negociada e contratual” (Sachs, 2009, p. 78). Nela, “o aproveitamento dos sistemas tradicionais de gestão de recursos, como também a organização de um processo participativo de identificação das necessidades, dos recursos potenciais e das maneiras de aproveitamento da biodiversidade” (Sachs, 2009, p. 75) são passos importantes em direção ao ecodesenvolvimento e à melhoria da qualidade de vida das comunidades envolvidas direta e indiretamente. Soma-se a isso a necessidade de planejamento popular urbano feito horizontalmente, ouvindo as necessidades, desejos e sonhos das pessoas que residem nesses territórios, e que lhes dê escolhas. 

É possível afirmar, portanto, que a gestão pública municipal de João Pessoa tem andado na contramão dos princípios do desenvolvimento sustentável e acompanhado tendências de um planejamento urbano e urbanismo neoliberal voltados para a promoção da imagem da cidade, em uma escala global, e do solo urbano, para o setor imobiliário. Tais práticas relacionam-se diretamente à prevalência da consideração de aspectos e interesses políticos e econômicos em detrimento das questões socioambientais na produção do espaço urbano, o que denota o desequilíbrio do atual modelo de desenvolvimento baseado no modo de produção capitalista, cujo fim principal é a acumulação privada do capital acima do bem comum. 

Referências

MIRANDA, Livia et. al. As articulações público-privadas, os projetos pró-mercado e as boiadas urbanísticas e ambientais em João Pessoa e Campina Grande. In: MIRANDA, Livia; MORAES, Demóstenes. Reforma Urbana e Direito à Cidade: os desafios para o desenvolvimento nacional Paraíba. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles/Letra Capital, 2022. Disponível em: http://reformaurbanadireitoacidade.net/livros/regiao-metropolitana-de-campina-grande-ejoao-pessoa/.

NASCIMENTO, Alexandre S. ARAÚJO, Joyce C. A revisão do Plano Diretor de João Pessoa como modelo de transferência, difusão e mobilidade de políticas “públicas” urbanas neoliberais do BID. Anais do X COLÓQUIO LADU-PROURB, Rio de Janeiro, 2024.

SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

SOUSA NETO, J. V.; NASCIMENTO, A. S. Planejamento e Desenvolvimento Urbano Sustentável X Direito à Cidade: diálogos e experiências de planejamento urbano popular em contexto de conflitos socioambientais. Anais do Encontro Internacional de Educação Popular e Cidadania - experiências e desafios. Conferência Virtual, 2020.  

*Alexandre Sabino do Nascimento é doutor em geografia, professor do Departamento de Geociências e pesquisador vinculado ao Observatório das Metrópoles, à Rede de Pesquisadores de Cidades Médias (ReCiMe) e ao Grupo de Estudos Urbanos (GeUrb/UFPB). 

**Paula Dieb Martins é doutora em arquitetura e urbanismo, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPB e pesquisadora vinculada ao Observatório das Metrópoles, à Rede de Pesquisadores de Cidades Médias (ReCiMe) e ao Grupo de Estudos Urbanos (GeUrb/UFPB). 

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

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Edição: Carolina Ferreira