Ser contra essa PL é não aceitar o retrocesso de um sistema que reforça desigualdades sociais
Por: Karla Maria Barbosa*
O projeto de lei 1904 tem a intenção de tornar crime o acesso ao direito já conquistado pelas mulheres, que é o aborto legal em casos de estupro. Assim, caso for aprovado, este projeto retira um direito das mulheres e as criminalizam caso venham a insistir na tentativa de por fim em um processo doloroso de um abuso sexual, embora as marcas fiquem como traumas nas vidas dessas mulheres e crianças.
Os responsáveis pelo projeto pretendem equiparar o aborto ao crime de homicídio, com penas de até 20 anos de detenção, conforme o julgamento do juiz. Será tratado como crime mesmo os casos em que as mulheres estejam com risco de vida devido a gravidez. O espanto com este projeto continua quando se sabe que a pena a ser aplicada às mulheres serão maiores do que a pena contra o estuprador, que é o verdadeiro criminoso. E este projeto que mexe com vida e direitos das mulheres e meninas do país, teve votação surpresa na Câmara, o que tira o caráter democrático de uma votação tão polêmica, pois não foram formadas comissões democraticamente constituídas para análise e aprovação.
Não se tem um projeto de lei em votação em caráter de urgência que trate sobre a saúde dessas vítimas de estupro ou que busque uma educação sexual a fim de conscientizar essa população sobre o que é abuso sexual e como proceder diante de um. Porém, há um projeto que pretende criminalizar a vítima de um crime, que é o estupro, em vez de acolher essas vítimas. Estamos diante de mais um ato de ódio às mulheres que passam por via legal e institucionalizada.
Apoiar a PL1904 é um retrocesso, pois viola e retira direitos já conquistados. Ser contra essa PL é não aceitar o retrocesso e sua relação com um sistema que reforça e perpetua as desigualdades sociais que leva crianças, adolescentes e mulheres, parte vulnerável de uma sociedade baseada no patriarcalismo, a sofrer violências e seus ciclos.
O PL 1904 pretende criminalizar o ato do aborto quando realizado após 22 semanas de gestação, ou seja, 5 meses e meio de gestação. De acordo com o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher de 2024 (RASEAM), o número de meninas, entre 10 a 14 anos, que gestaram e tiveram filhos chegou a 14.262 em 2022. Isto é, quase 15 mil crianças se tornaram mães no Brasil em 2022 e esse número mais que duplica quando se trata de casos de gestações entre adolescentes, 301.008 meninas de 15-19 anos se tornaram mães nesse mesmo ano. Dentre esses números, estão milhares de meninas que não comunicaram aos seus responsáveis sobre a consequência do abuso sexual ao qual foram acometidas. Isso se dá pelo fato de muitas crianças não terem conhecimento sobre seu próprio corpo, sobre o que é um abuso sexual e sobre ser vítima de um crime.
Ainda de acordo com os dados do RASEAM, ocorre um estupro a cada 8 minutos no Brasil e o aborto é quarta causa de mortalidade materna, chegando a 9,4% de mortes em 2022. Dentro desse número, destaca-se que as mulheres pardas são as maiores vítimas. Estamos aqui diante de números alarmantes de um crime que não causam tanta polêmica e perplexidade quanto o acesso a um direito por parte da vítima.
Na realidade, temos um crime, que é o estupro, que faz parte de uma cultura machista e que está arraigada em nossa sociedade. Os casos de abuso sexual que ocorre dentro do próprio seio familiar dessas crianças e mulheres é a prova disso. Muitos dos abusadores são próximos das vítimas, sendo muitos deles o pai, o tio, o irmão, o primo, o vizinho ou amigo da família.
Não há outra definição para este projeto de lei a não ser como ato institucionalizado de crime de ódio contra nós, mulheres e meninas. Estão a determinar sobre as vidas e corpos de meninas e mulheres, e o grande problema se encontra nos relatores e votantes desses projetos, que são em grande maioria, homens, o gênero que é o autor dos crimes de estupro e abuso sexual. São mais urgentes projetos que viabilizem programas de educação sexual para crianças e adolescentes, como também programas de acolhimentos humanizados para as vítimas de abuso sexual. E estamos diante do contrário, estamos diante da intenção de criminalizar a vítima de um crime em vez do autor do crime ao qual a vítima foi submetida. Ou seja, forma-se uma ampliação do ciclo de violência ao qual, crianças e mulheres são forçadas a vivenciar seja no seio familiar ou pela sociedade.
Ser contra este Projeto de Lei é ter consciência de que se deve erradicar o crime e não culpabilizar e criminalizar a vítima dele. Quando uma sociedade busca acolher as vítimas de forma humanizada, conscientizar toda a população sobre direitos sexuais e reprodutivos e, dessa forma, promover direitos humanos é um avanço no caminho para a justiça social.
E não podemos falar sobre justiça social sem falar sobre interseccionalidade. Estamos a falar sobre violências em que a maioria das vítimas são crianças e mulheres pardas e que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Temos constatado que quem sofre mais consequências com o acesso ao aborto, são as mulheres e crianças pardas e negras, que se encontram majoritariamente nas classes sociais mais vulneráveis da sociedade. A construção e evolução de uma sociedade não pode ocorrer com base numa estrutura de desigualdades. Se uma sociedade é desigual, não há avanços, pois a sociedade é composta por partes que formam um todo.
Reger uma sociedade de forma democrática não é decidir sobre toda a sociedade a partir dos interesses de uma pequena parcela dessa sociedade. Este Projeto de Lei fere a dignidade da pessoa humana assim como o melhor interesse da criança, principalmente quando ela é vítima de violência.
Não há avanço e justiça social quando estão a ferir a dignidade da pessoa humana, não há democracia quando uma parcela da sociedade que reger o todo conforme seus preconceitos e dogmas. Em uma enquete realizada no site da Câmara dos deputados sobre essa PL, demonstra qual é o verdadeiro interesse da sociedade, isto é, 88% dos votantes são contra esse retrocesso absurdo.
Apoiar a PL1904 é um retrocesso, pois viola e retira direitos já conquistados. Ser contra essa PL é não aceitar o retrocesso e sua relação com um sistema que reforça e perpetua as desigualdades sociais que leva crianças, adolescentes e mulheres, parte vulnerável de uma sociedade baseada no patriarcalismo, a sofrer violências e seus ciclos. É preciso apoiar projetos que eduquem as crianças sobre seus corpos e sobre sexualidade, a fim de que, caso ocorra uma violência contra seus corpos, elas possam reconhecer o crime e denunciar os (verdadeiros) culpados e que estes sejam penalizados diante da lei.
*Socióloga, mãe e militante da Coletiva Pachamama de Mães feministas
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
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Edição: Cida Alves