[...] esse movimento também se tornou uma opção política, fazendo jus à minha trajetória de audácia
Por Danilo Santos da Silva*
“Não aceito mais as coisas que não posso mudar,
estou mudando as coisas que não posso aceitar” (Angela Davis)
Conceição Evaristo destaca a habilidade das mulheres negras em transformar suas adversidades em literatura, usando a experiência de Carolina Maria de Jesus como exemplo. Carolina escreveu sobre a fome e a discriminação que enfrentava como mulher negra, confrontando a sociedade brasileira e estabelecendo-se como escritora. Essa audácia permitiu que ela criasse narrativas que representassem a comunidade e estabelecessem conexão com outros indivíduos.
É a partir dessa perspectiva que pretendo iniciar uma breve escrita memorial, que, de alguma forma, é individual e ao mesmo tempo coletiva! Sou um homem negro de 40 anos, professor, pesquisador, historiador e ativista antirracista. Minha mãe me incentivou a estudar, com o objetivo de conseguir melhores condições de vida. Inicialmente, pretendia apenas concluir o Ensino Médio e conseguir emprego de “qualidade”. É exatamente essa busca por melhores condições de vida, a partir do trabalho, que me fez entender, que talvez, não teria outra possibilidade de melhores condições de vida, que não fosse por meio dos estudos.
Mas também, ao mesmo tempo, me veio a dura realidade de que, talvez, a possibilidade de seguir o caminho do estudo não fosse uma realidade para mim, justamente, por precisar trabalhar e ajudar nas despesas de casa. Aqui se apresenta, pela primeira vez, o dilema da escolha entre o trabalho e os estudos que perdura até os dias atuais. Se antes não era uma questão, o trabalho sempre prevalecia, como aconteceu no ensino básico, agora não, o estudo passou a ser, junto ao trabalho, prioridade.
Se antes se mostrava difícil conciliar trabalho e vida acadêmica, agora com o ativismo político, como isso poderia dar certo?
Além disso, antes mesmo de entrar na academia, também tive contato com os movimentos sociais, que foram fortalecidos dentro do universo acadêmico. Desta forma, apresento o terceiro elemento dessa engenharia social, o ativismo político. Se antes se mostrava difícil conciliar trabalho e vida acadêmica, agora com o ativismo político, como isso poderia dar certo? É exatamente aqui que, mesmo sem perceber, começo a mudar as coisas que não posso mais aceitar!
Ativismo Político, pesquisa e vida profissional
A minha experiência começou com o Núcleo de Estudantes Negros e Negras (NENN/UFPB), no processo de implantação das cotas na UFPB e por meio do movimento negro, com discussão da educação antirracista e da lei 10.639/2003 e mais recente, a partir de 2023, como aluno cotista do doutorado de Agroecologia e Desenvolvimento Territorial da UFRPE.
Comecei o meu ativismo político na associação de bairro de Muçumagro e no Grupo Ação Comunitária (GAC). Como diretor cultural da associação, participei de uma campanha para valorizar e afirmar o nome da comunidade Muçumagro, localizada no litoral sul e fazendo divisa com o município do Conde, na região metropolitana de João Pessoa.
A comunidade sustentava-se por meio da agricultura familiar, pesca e coleta de frutos silvestres. Além disso, a região é cercada por territórios quilombolas e habitada pelo povo indígena Tabajara. Os moradores mais antigos defendem o nome de Muçumagro, relacionado à pesca do peixe muçum, enquanto os moradores mais novos preferem o nome de Monsenhor Magno, alegando que a interpretação popular equivocada transformou o nome em Muçumagro.
Aqui surge, pela primeira vez, a necessidade de adquirir mais conhecimentos para legitimar o meu discurso e justificar minhas reivindicações políticas, enquanto diretor de eventos. Utilizando-se do ativismo como forma de modificar realidades, apropriando-se da relação entre poder, cultura, educação e política.
Essa campanha visava defender e valorizar a denominação Muçumagro, erroneamente atribuída ao nome de um religioso chamado Monsenhor Magno, e argumentava que a origem está relacionada à pesca do peixe muçum, uma prática tradicional dos quilombolas e indígenas, e não à influência da Igreja Católica.
A outra experiência que vivenciei foi no GAC, um ambiente rico em análises de conjunturas que contribuiu muito na minha formação. Ao mesmo tempo, ainda muito marcado com a experiência da associação, eu sentia falta da discussão étnico-racial naquela organização comunitária. Aqui também me deparo com o poder e as formas de resistência no sistema político. Pouco pude fazer sobre essa ausência, a discussão entre classe e raça seria retomada mais tarde em minha carreira de ativista, quando entrei na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Por intermédio do NENN/UFPB, encontrei uma porta de entrada para o movimento negro. Foi o início do meu processo de produção de conhecimento baseado no ativismo político, com o objetivo prático de construir uma trajetória acadêmica sem desconsiderar a minha experiência no movimento social.
Quando se trata da minha trajetória acadêmica como pesquisador, iniciei essa experiência com a iniciação científica na graduação de história, tendo como campo de atuação o movimento negro e o Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB). Essas experiências me auxiliaram no mestrado e no desenvolvimento do projeto de doutorado, cujos temas de pesquisa estão alinhados com essa trajetória.
O meu percurso na pesquisa acadêmica teve início com a participação no projeto intitulado: Visões da África e Práticas Emancipatórias dos Intelectuais Afro-Brasileiros e Africanos (1944-1988). Também me envolvi no projeto de extensão intitulado: Margens do Atlântico, no qual analisamos a representação da população negra e do Continente Africano nos filmes hollywoodianos. Essas experiências me ajudaram a compreender como o ativismo e a pesquisa podem desafiar o conhecimento e a dominação social.
Nesse sentido, NENN/UFPB possibilitou a produção e a aplicação prática do conhecimento, contribuindo para a conclusão da graduação, do mestrado e para futuras pesquisas de doutorado. Além disso, permitiu o estabelecimento de uma relação entre o ativismo, a pesquisa e o conhecimento. Por um lado, o NENN/UFPB desempenhou um papel importante ao promover a conexão entre os dois universos mencionados. Por outro lado, o NEABI/UFPB teve o papel de legitimar a produção do conhecimento resultante dessa conexão e, consequentemente, legitimou também a minha trajetória como pesquisador independente. Ao mesmo tempo, possibilitou a realização de trabalhos de pesquisa.
Com o NEABI/UFPB, pude me tornar um pesquisador reconhecido, o que me permitiu realizar projetos importantes, como o Mapeamento de Terreiros da Grande João Pessoa e a Ciranda de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes Quilombolas e de Terreiros da Paraíba. Ambas as pesquisas envolveram as comunidades quilombolas e de terreiros do estado da Paraíba. Além disso, possibilitou desenvolver a pesquisa de campo sobre o Acesso às Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, com ênfase na comunidade da Jurema Sagrada.
Esse movimento dialético de produção de conhecimento, em prol da carreira profissional, se consolida mediante a criação da Mocambagem, empresa de consultoria que aborda de forma exclusiva a questão étnico-racial. Consultoria voltada para produção e execução de projetos, no campo da educação, da cultura, dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável. Nessa consultoria tem sido desenvolvido projetos, objetivando produzir conhecimento com a função prática na vida das pessoas que pretende alcançar.
Outra vivência é no cargo de coordenador de área do Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), vinculado à Assessoria Técnica Independente - Associação dos Pescadores e Extrativistas e Remanescentes de Quilombo do Degredo (ATI-ASPERQD), primeira assessoria técnica quilombola do Brasil. Assim, essas duas experiências, na Mocambagem e no PBAQ, ajudam a materializar essa busca pela conjugação do ativismo político e da pesquisa dentro na minha carreira profissional.
Sempre tive como objetivo a produção de conhecimento com a função prática
Dentro desse horizonte, e em busca da conjugação entre as três perspectivas, sempre tive como objetivo a produção de conhecimento com a função prática. Busquei sempre trabalhar e, ao mesmo tempo, não me afastar do ativismo e da pesquisa. Essa busca me levou a tornar-me um profissional, professor e historiador do campo das relações étnico-raciais.
Se no passado esse movimento dialético foi motivado por necessidades, no presente, ao fazer doutorado, ainda tenho que conviver com esse dilema de conciliar trabalho, pesquisa e ativismo político. A diferença é que agora esse movimento também se tornou uma opção política, fazendo jus à minha trajetória de audácia, mudando as coisas que não posso mais aceitar!
Para saber mais
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2017.
EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
EVARISTO, Conceição. Raphael Montes. As vozes marginalizadas na literatura. Trilha de Letras, Estúdio da TV Brasil, 2018. Acessado em: https://youtu.be/9lpOGN36WxA. 14/07/2023.
*Danilo Santos da Silva é coordenador do Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ) – Assessoria Técnica Independente-ASPERQD. Pesquisador Colaborador do NEABI/UFPB.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
***Este relato faz parte de uma série da coluna "História Pública & Narrativas Afro-Atlânticas", do NEABI-UFPB, com o objetivo de trazer histórias de estudantes que entraram na universidade por meio das políticas de cotas (graduação, mestrado, doutorado). Leia o primeiro texto da série aqui.
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Edição: Carolina Ferreira