O ritual do Toré, o coco de roda e a ciranda formam a cultura mais tradicional do povo Potiguara
Por Marilene Lourenço de Oliveira*
“Potiguara é guerreiro!”: revisitar as memórias de um povo é perpetuar seu legado.
Me chamo Marilene Lourenço de Oliveira, indígena Potiguara, nascida na Aldeia Laranjeira, atualmente com 44 anos de idade. Resido desde os sete anos na cidade de Baía da Traição (PB). Em razão de alguns problemas de saúde da minha mãe, fui criada pelas minhas primas, que tenho como mães: Marilene Artur e Joana Artur, com a companhia da minha prima/irmã Poliana Artur, e apoio de grandes homens como Jorge Pedro do Nascimento e Francisco Cominote Damasceno, que me deram educação, respeito e carinho. Tudo que sou hoje agradeço a essas mulheres guerreiras e a esses grandes homens. Sou casada com Sandro Soares de Oliveira, com quem tenho dois filhos.
Sou filha de Maria do Carmo Lourenço, 78 anos, indígena Potiguara, viúva, agricultora, que criou seis filhos (Manoel, Antônio, Maria, Otaviano, Marisa e eu, Marilene) como mãe solteira, com muito amor, dedicação e educação.
Iniciei minha vida nas atividades culturais desde criança, no dia a dia dentro da minha aldeia de origem, junto à minha mãe e demais familiares, com brincadeiras de dança desde cedo na aldeia. Entrei no movimento indígena aos 16 anos idade, em que íamos reivindicar nossos direitos e melhoria da saúde indígena e de uma educação de qualidade, além do respeito à nossa cultura tradicional e territorialidade. Nesse contexto, fui a primeira agente de saúde da minha comunidade, por meio de processo seletivo, no qual fui classificada, mas, após um ano, deixei o trabalho por falta de identificação.
No ritual do Toré Sagrado, aprendi desde cedo, praticando e partilhando nossas práticas culturais e vivências dentro e fora das nossas comunidades e cidades vizinhas, a importância da nossa cultura, dos nossos ancestrais e da nossa espiritualidade, dentre outras atividades que fazem parte da cultura indígena Potiguara.
: A memória étnica também é direito humano: o Toré Potiguara como símbolo de (re)existência :
Aprendi o coco de roda e a ciranda por meio da observação das apresentações. Fui aprendendo os passos com os anciãos dos grupos de coco que tínhamos na nossa cidade de Baía da Traição, especialmente nas datas comemorativas de São João e outras festividades religiosas.
: O coco de roda e a luta pelo direito à terra na Paraíba :
O Coco de Roda Flor de Laranjeira é um grupo de tradição indígena da Aldeia Laranjeira que mantém essa cultura e tradição no território indígena Potiguara Paraibano, composto por cerca de 30 integrantes brincantes indígenas e não indígenas, com faixa etária de dois a 77 anos de idade: são crianças, idosos, jovens e adultos. O grupo foi formado por mim, enquanto professora indígena Potiguara, conhecida popularmente por Preta, da Escola Naíde Soares da Silva. Iniciei o grupo com os alunos da Educação Infantil e Fundamental I, professores e diretora da escola: Josinalva de Azevedo Bernardo, Cláudio Antônio da Silva e Cristina Ferreira da Silva.
Em 2018, a Secretaria de Educação do município de Baía da Traição realizou a Semana Cultural, na qual as 14 escolas do município iriam apresentar a cultura local e suas particularidades. Foi daí que a coordenadora pedagógica na época, Olivia de Brito, levou o projeto e pediu que nós, professoras e direção escolar, escolhêssemos um tipo de apresentação. A partir disso, eu dei a ideia de apresentar o coco de roda, que foi prontamente aceito pelos demais professores, mas fez surgir a insegurança de muitos por não saber dançar, tocar, nem cantar o coco. Após várias indagações, a professora Josinalva revelou que sabia dançar, pois seu pai tocava e cantava coco na Aldeia Estiva Velha e que aprendeu com ele. Assim, consegui um CD e começamos a ensaiar todos os dias com os alunos e professores, que foram “tomando gosto” e aprenderam rápido, levando ao sucesso da apresentação.
Após a repercussão da apresentação, os moradores vieram até a mim, perguntando se havia como fazermos um grupo maior, para que eles também pudessem participar. Assim, nosso grupo foi crescendo cada vez mais. No início, os ensaios eram no pátio da escola, onde nos encontrávamos finais de semana; em 2021, a anciã conhecida como Dona Marinha (Maria Barbosa da Silva), construiu sua oca e os ensaios passaram a ser realizados lá. Aos poucos, as aldeias e cidades vizinhas começaram a nos convidar para as celebrações religiosas e demais festivais.
No ano de 2020, convidei um amigo e parente indígena Potiguara, Miguel Farias da Silva, conhecido popularmente como Miguel de Iva, para participar do nosso grupo. Com sua entrada, nos reunimos para pedir colaborações e conseguirmos um bombo, já que não tínhamos instrumento algum. Conseguimos comprar o instrumento e até os dias atuais Miguel é nosso Mestre Cantor e atirador de coco do nosso grupo. De lá pra cá, nosso grupo já ganhou quatro editais da Lei Aldir Blanc, além de que quatro Mestres do nosso grupo também foram contemplados pelos editais, o que é muito gratificante para a nossa cultura, que é cada dia mais fortalecida.
A dança do coco é parecida com o ritual do Toré Potiguara, pois seus toques, ritmos, batuques e instrumentos são parecidos.
A dança do coco é parecida com o ritual do Toré Potiguara, pois seus toques, ritmos, batuques e instrumentos são parecidos. Juntos, o ritual do Toré, o coco de roda e a ciranda formam a cultura mais tradicional do povo Potiguara. É relatado por nossos antepassados a história de que em todas as festas e comemorações estavam presentes essas culturas e que, ao final do ritual do Toré Sagrado eram dançados o coco de roda e ciranda. Nossos instrumentos do Coco são o Bombo e o ganzá (também era usada a gaita pelos nossos antepassados).
Os cocos que cantamos são em homenagem aos nossos mestres que não se encontram mais entre nós
Os cocos que cantamos são em homenagem aos nossos mestres que não se encontram mais entre nós, como os mestres Baiense, Miguel da Goga, Manoel Fulor, Manoel Tavares e Zé Custódio. Cada um deixou seu legado para que pudéssemos dar continuidade à nossa cultura.
A Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade já registrava desde 1938 a existência de grupos de Coco de Roda Indígena na cidade de Baía da Traição, mas a nossa cultura já existe há mais de centenas de anos de muita resistência.
Estou nessa luta até os dias de hoje, partilhando saberes e acordando os grupos culturais do nosso Território, a fim de que todos tenham seu espaço e de que perpetuem nossa cultura para as futuras gerações.
*Marilene Lourenço de Oliveira é professora indígena Potiguara, graduada em pedagogia, pós-graduada em Educação Infantil, produtora cultural e coreógrafa de dança do coco de roda.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Paraíba.
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Edição: Carolina Ferreira