Paraíba

Coluna

Um Brasil feito sob a ótica do seu colonizador

"O racismo passa a fazer parte da construção social brasileira a partir da sua manifestação primordial: a colonização." - Foto: Reprodução.
No documentário Menino 23, é nítida a perduração dos ideais que levaram ao regime de escravidão

Por Nathalia Fernandes Pinto*

Para início, é fato que o racismo foi um pilar central na construção da sociedade brasileira, moldando suas instituições e práticas sociais. Nesse contexto, pode-se discorrer sobre em quais aspectos e como se deu o processo de construção social de uma sociedade que, apesar da diversidade cultural e miscigenação, tem uma configuração social que reflete o racismo historicamente instaurado no país.

O racismo passa a fazer parte da construção social brasileira a partir da sua manifestação primordial: a colonização. Em que o colonizador, que se intitula como “descobridor”, que invade, abusa e subjuga os povos originários aqui encontrados. A figura do colonizador é caracterizada por um sujeito que se põe em uma posição de superioridade em relação a esses povos, alicerçada em um etnocentrismo tremendo, desconsiderando qualquer tipo de expressão cultural, direito, liberdade e dignidade dos indígenas brasileiros. Mais tarde, com a instituição de um tráfico negreiro (mais um reflexo do etnocentrismo europeu e manifestação do racismo), inicia-se a era de exploração de milhares de pessoas negras de origem africana, as quais realizavam todo o trabalho necessário para impulsão da economia brasileira da época em regime de escravidão e sofrimento extremos. 

Mesmo após a abolição da escravidão, que durou um longo período no Brasil, sendo o último país americano a fazê-lo, o racismo perdurou com vigor no país, refletido em um abandono e descaso moral, político, econômico, educacional e social com pessoas negras. Grande prova de que o preconceito racial se estruturava de maneira sólida e se constituía descaradamente na sociedade brasileira, foi o conjunto de políticas que por essência tinham a exclusão de pessoas negras e indígenas da sociedade. A exemplo disso, cabe ressaltar as políticas que fomentavam a impossibilidade de ascensão social de pessoas negras, sua expulsão de centros urbanos (configurando políticas de higienismo), branqueamento da população e ainda, a ausência de qualquer tipo de política que auxiliasse aos recém-libertos a se inserir na sociedade, a qual eles não possuíram acesso por três séculos e meio, dentre todo o preconceito, perseguição e apagamento social sofrido pelos afrodescendentes. O racismo ganhou ainda mais respaldo com o surgimento de escolas pseudocientíficas, que buscavam embasar cientificamente e justificar a inferioridade imposta sobre os negros e povos que fugiam do padrão do branco europeu, e consequentemente, ao tratamento cruel que lhes foi dado ao longo da história do Brasil.

As favelas surgem em meio a um cenário em que pessoas negras eram indesejadas nos centros urbanos e por isso, eram perseguidas e expulsas dos mesmos pelo Estado

Sendo assim, a história da economia, da cultura, dentre outros segmentos do Brasil, se desenvolve concomitantemente com uma história de opressão étnica de europeus para com povos negros e originários, sendo, portanto, recheada com marginalização e eugenia, seja de forma concreta/física, seja social. Um exemplo de exclusão física/concreta seria o processo de favelização. As favelas surgem em meio a um cenário em que pessoas negras eram indesejadas nos centros urbanos e por isso, eram perseguidas e expulsas dos mesmos pelo Estado, que buscava “higienizar” a sociedade brasileira. Isso devido à crença de que a presença dessas pessoas era considerada uma poluição social e um sinônimo de fracasso dessa sociedade racista. Socialmente, pode-se apontar a movimentação política de financiar a vinda de imigrantes europeus, adotada pelo Brasil pós-abolição, visando substituir a mão de obra escrava de pessoas negras por uma mão de obra assalariada de pessoas brancas. Fato este que tem por consequência − e certamente como objetivo intrínseco −,  a exclusão e inibição da inserção dos recém-libertos no novo modelo de economia brasileiro, aos quais somente restava a pobreza, trabalhos análogos à escravidão, criminalidade, dentre outros contextos que passaram a se tornar estereótipos dessas pessoas.

A crença de que pessoas negras e indígenas não deveriam ter direitos como o acesso à educação, ascensão social, moradia digna, tratamento igualitário, oportunidades de emprego assalariado, entre outros direitos pairava sobre o senso coletivo da sociedade brasileira da época. Esse ponto de vista, intrinsecamente, se perpetua na atualidade, na qual ainda se observa o preconceito racial, marginalização, perseguição religiosa, desvalorização de trabalhos domésticos, pouca representatividade, desigualdade social e econômica com relação a população afrodescendente.

No documentário Menino 23: infâncias perdidas no Brasil, é nítida a perduração, banalização e consolidação dos ideais que levaram ao regime de escravidão. O fato de crianças negras, mesmo após abolição, terem sido escravizadas e exploradas de maneira explícita, e isso ter ocorrido de maneira que não houve estranhamento algum por parte das pessoas da época, só demonstra que o país se constrói em cima de um ideal racista, em que não há “problemas” em desumanizar humanos, contanto que eles não sejam brancos. 


O documentário "Menino 23: infâncias perdidas no Brasil", foi lançado em julho de 2016, e é dirigido por Belisario Franca. / Foto: Divulgação.

Um outro grande e nítido exemplo é o do caso do “Manicômio de Barbacena”, conhecido como Holocausto Brasileiro, um evento histórico que também possuiu cunho racista e que durou anos, tendo em vista que milhares de crianças e pessoas negras eram verdadeiramente abandonadas para serem excluídas e “limpadas da sociedade”, mesmo após o fim da escravidão, comprovando uma essência racista do Brasil. 

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A forma como se dão as relações sociais no Brasil se refletem muito desses fortes ideais implementados pela colonização, de maneira que o colonizador foi capaz de gerar uma consciência coletiva consoante com sua conduta e crença, a fim de dominar completamente o território, os recursos e as pessoas as quais ele julgou inferiores e menos civilizadas. Um reflexo dessas relações é muito bem visualizado na forma como a elite brasileira enxerga o trabalho doméstico, majoritariamente ocupados por pessoas negras, muito bem retratada no documentário “O Menino 23” e no podcast “Piores Patrões” pela história do homem conhecido como “Número 2”, uma das vítimas do acontecido retratado no documentário, e pela Lucileide Mafra, que conta sua história de abusos no seu ofício de trabalhadora doméstica no podcast.

Em suma, é notória que a profunda desigualdade socioeconômica, de oportunidades trabalhistas e de educação, bem como a situação das comunidades periféricas, o preconceito racial, a violência e perseguição sofridos pela população negra e indígena, se tem por uma construção histórica, um reflexo de uma sociedade pautada e enriquecida pela escravidão, pelo abuso, pela tortura e pela exploração de povos originários e de povos traficados da África e que, portanto, carregam traços persistentes do racismo na estrutura, economia, instituições, educação, relações sociais e demais aspectos deste país.

Para saber mais

O Menino 23: infâncias perdidas no Brasil. Direção: Belisario Franca. Produtora Giros, 2016.
Uma Breve História sobre o Racismo no Brasil. Direção: Dirceu Lima Junior. Humanos Humanizam, Youtube, 2019.
Os Piores Patrões. Direção: Thiago Rogero. Produção: Projeto Querino. Rádio Novelo, Youtube, 2022.
SKIDMORE, T. E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

*Nathalia Fernandes Pinto é graduanda do curso de Medicina Veterinária da UFPB no 3°período. Membro do Laboratório de Ecologia e Conservação de Animais Selvagens e do Grupo de Estudos de Animais Selvagens da mesma universidade. Extensionista do Projeto Conhecendo para Conservar. Aluna da disciplina de Educação das Relações Étnico-Raciais, texto orientado pela profa. Dra. Ana Cristina Silva Daxenberger. 

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Paraíba


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Edição: Carolina Ferreira