Estima-se que 600 pessoas tenham se inscrito nos cursos de alfabetização do TEN
Por Diego dos Santos Reis*
Sombrio corre o sangue derramado
No mar-aquém de tanta luta devotado
Mas o sangue continua rubro a ferver.
(Abdias Nascimento, O Sangue e a Esperança, 1982.)
Foi numa sexta-feira 13. Em 13 de outubro de 1944, congregando intelectuais, artistas e ativistas racialmente engajados/as, é fundado no Rio de Janeiro o Teatro Experimental do Negro (TEN). À frente do projeto que visa valorizar e afirmar a identidade e o legado negro nas artes da cena brasileira, Abdias Nascimento, Aguinaldo Oliveira Camargo, Wilson Tibério, Teodorico dos Santos, José Herbel, Arinda Serafim, Elza de Souza, Marina Gonçalves, Maria Nascimento e outras/os não deixam de justapor educação, cultura e arte como armas de guerra na luta contra o racismo no país, reforçado pelos “estereótipos negros destituídos de humanidade”¹. Armas que expandem o palco e a cena do teatro para as salas de aula, com um projeto voltado à valorização da identidade negra, à alfabetização da população negra e à formação cultural implicada no combate ao racismo, amplamente difundido no Brasil pelas instituições artísticas e educativas.
Não estranha que a produção teatral do coletivo, a atuação política e as práticas pedagógicas não se dissociem ao longo de sua existência. Abdias Nascimento afirmaria em entrevista datada de 11 de dezembro de 1946 que: “Quando fundamos o Teatro Experimental do Negro, ficou desde logo estabelecido que o espetáculo, a pura representação, seria coisa secundária. O principal, para nós, era a educação, e esclarecimento do povo. Pretendíamos dar ocasião aos negros de alfabetizar-se com conhecimentos gerais sobre história, geografia, matemática, línguas, literatura, etc. Por isso, enquanto a União Nacional dos Estudantes nos cedeu algumas de suas inúmeras salas, pudemos executar em parte esse programa (Ipeafro, 1946).”
Estima-se que 600 pessoas tenham se inscrito nos cursos de alfabetização do TEN, sob a coordenação de Ironides Rodrigues. A proposta de educação popular vai ao encontro da concepção formativa ampla, com cursos de iniciação cultural, a cargo de Aguinaldo Camargo, e teatro e interpretação, ministrados por Abdias. A alfabetização baseava-se amplamente na leitura de peças teatrais e no exercício, ao mesmo tempo, artístico, pedagógico e político, com vistas à conscientização e emancipação da população negra.
Segundo Ironides Rodrigues (1998, p. 210-211): “O Teatro Experimental do Negro tinha por base o teatro como veículo poderoso de educação popular. Tinha sua sede num dos salões da União Nacional dos Estudantes, onde aportavam dos subúrbios e dos vários pontos da cidade, operários, domésticas, negros e brancos de várias procedências humildes. Ali, a pedido de Abdias, ministrei por anos a fio, um extenso curso de alfabetização em que, além dos rudimentos de português, história, aritmética, educação moral e cívica, ensinei também noções de história e Evolução do Teatro Universal, tudo entremeado com lições sobre folclore afro-brasileiro e as façanhas e lendas dos maiores vultos de nossa raça. Uma vez por semana, um valor de nossas letras ali ia fazer conferência educativa e acessível àqueles alunos operários que até́ altas horas da noite, vencendo um indisfarçável cansaço físico, ali iam aprendendo tudo o que uma pessoa recebe num curso de cultura teórica e ao mesmo tempo prática”.
A despeito de não ter uma sede fixa, o coletivo ocupava salas cedidas ora pela União Nacional dos Estudantes (UNE), ora pelo Museu de Belas Artes, e realizava, ao menos em parte, o projeto formativo que, mais tarde, no governo Brizola, segundo Abdias, estaria também na base do programa dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), de Darcy Ribeiro, com sistema integral de educação, alimentação, assistência odontológica. O debate voltado à cultura negro-brasileira, suas expressões e legados abre portas não só para a problematização das ausências, estigmas e sub-representações na cena brasileira, mas também para afirmação da negritude e de uma estética teatral negra como resposta à monocromia e às estereotipizações que faziam das pessoas negras objeto sexual ou de escárnio, desumanizando-as e reduzindo-as a representações racistas, muitas vezes resguardadas sob o invólucro da comédia e da farsa.
Na noite de 8 de maio de 1945, o TEN estreou o seu primeiro espetáculo, sob a direção de Abdias Nascimento. O Imperador Jones, de Eugene O’Neill, ganhou vida negra no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, celebrado pela crítica e pelo público. A data que marca o fim da Segunda Guerra Mundial, com a rendição da Alemanha nazista, coincide com o marco da luta antirracista nas artes da cena brasileira. O que na crítica elogiosa para O Globo, de Henrique Pongetti, de 10 de maio de 1945, ganharia o seguinte destaque: “Uns negros bem vestidos e bem falantes revolucionaram o ‘hall’ onde as granfinas brancas encontram perspectiva para o chiquismo da própria figura”. Lembre-se que, se era incomum a presença de pessoas negras nas plateias do Teatro Municipal, nos palcos, sobretudo, tudo passava em branco no festim das artes nacionais.
Os encontros e reflexões do TEN subsidiariam, ainda, a 1ª Reunião da Convenção Nacional do Negro, em 1945, e o 1º Congresso do Negro Brasileiro, em 1950 – mobilizações fundamentais que contribuem para a promulgação, em 1951, da Lei Afonso Arinos. Em 1949, é fundado o Instituto Nacional do Negro, departamento de estudos e pesquisas do TEN, e o Jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, periódico da imprensa negra, publicado pelo TEN entre 1948 a 1950, e que desempenha um papel fundamental na difusão de ideias, manifestos e proposições do coletivo. Até o início de 1950, na coluna nomeada Nosso Programa, o Quilombo não deixou de publicar na terceira página o seu principal objetivo: “Trabalhar pela valorização e valoração do negro brasileiro em todos os setores: social, cultural, educacional, político, econômico e artístico” (Ipeafro, 1948, p.3).
Entre duas ditaduras nacionais, o Estado Novo e a empresarial-militar, o TEN foi expressão da coragem – um sonho coletivo gestado por quem ousou imaginar um país em que a liberdade se inscrevia no corpo, no gesto e na palavra: o anverso da máscara
Outro intelectual importante que merece destaque na trajetória do grupo foi o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, que integrou mais assiduamente o coletivo entre 1948 e 1955. Para Guerreiro Ramos (1995, p. 205), o TEN seria “no Brasil, a manifestação mais consciente e espetacular da nova fase, caracterizada pelo de que, no presente, o negro se recusa a servir de mero tema de dissertações ‘antropológicas’ e passa a agir no sentido de desmascarar os preconceitos de cor”. Nas trilhas da intelectualidade negra, o TEN foi um processo de autoconstituição e protesto contra a “patologia social do branco brasileiro”. Com Léa Garcia, Ruth de Souza, Milton Gonçalves, Haroldo Costa, Zeni Pereira e outras/os artistas, reivindicou a cena e protagonizou a luta pelos direitos sociais à população negra, contra o “mito da democracia racial” vigente. Entre duas ditaduras nacionais, o Estado Novo e a empresarial-militar, o TEN foi expressão da coragem – um sonho coletivo gestado por quem ousou imaginar um país em que a liberdade se inscrevia no corpo, no gesto e na palavra: o anverso da máscara.
Em 1968, com o exílio de Abdias nos Estados Unidos da América, onde permaneceria por 13 anos, o TEN encerra formalmente as suas atividades. Seu legado, todavia, é perene e se inscreve na cena aberta da história brasileira em primeiro plano. O TEN, em seus 80 anos de existência, segue como herança viva da luta negra: um sortilégio em 80 atos que desafia a memória nacional e os apagamentos institucionais.
Está tudo registrado
com cuidado e devoção
tambor do sangue martirizado
batendo toque de rebelião
(Abdias Nascimento, Axés do Sangue e da Esperança, 1983).
Nota
¹ NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016. p. 187.
Para saber mais
IPEAFRO. Nosso Programa, Quilombo, dezembro de 1948.
IPEAFRO. Teatro Experimental do Negro. Origem – nenhum auxílio do governo – O’Neill para os negros. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1946.
NASCIMENTO, Abdias. O Teatro Negro no Brasil: uma experiência sócio-racial. Revista da Civilização Brasileira, 1968. Caderno Especial 2.
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.
RAMOS, Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
RODRIGUES, Ironides. Diário de um Negro Atuante (1974-1975), THOT. Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, n.5, p. 210-211, 1998.
*Diego dos Santos Reis é professor da UFPB. Lidera o Travessias − Grupo de Pesquisa em Filosofia e Educação Antirracista (UFPB/CNPq).
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Edição: Carolina Ferreira