É essencial reconhecer a contribuição de Celso Furtado
Por Alexandre Cesar Cunha Leite*
No ano de 1974, o economista Celso Furtado organizou uma série de ensaios produzidos no período compreendido entre 1972 e 1974 quando esteve como professor visitante em universidades dos Estados Unidos e no Reino Unido. Do compilado desses ensaios nasceu uma obra atemporal, que debatia com densidade e profundidade grandes problemas que faziam ou deveriam fazer parte da discussão sobre desenvolvimento econômico. Surgia uma leitura incontornável sobre o desenvolvimento, sobre a desigualdade existente entre as nações desenvolvidas e aquelas que lutavam para sobreviver diante dos obstáculos estruturais e conjunturais e buscavam emular modelos para também alcançar o tão almejado desenvolvimento. Nascia uma obra de referência: O Mito do Desenvolvimento Econômico.
: Artigo | Celso Furtado: pensar, sonhar e agir :
Para além de duras críticas ao enrijecimento dos métodos na ciência econômica e o descolamento tanto dos métodos quanto das teorias do ambiente social global, Celso Furtado antecipou na obra supracitada duras críticas ao capitalismo predatório e desigual e seus impactos ambientais. As críticas feitas também se apoiavam na falsa esperança, em um mito de que as nações menos desenvolvidas teriam condições de aprender e imitar os modelos desempenhados pelas nações de elevado desenvolvimento industrial para alcançar seu próprio desenvolvimento, à semelhança dos países que serviam de exemplo.
O volume e relevância das contribuições de Celso Furtado nesse livro é tamanha que seria impossível endereçá-las todas em um texto tão curto. Portanto, concentro neste pequeno ensaio ao alerta feito por Furtado sobre os impactos ambientais (e climáticos, de forma derivada) decorrentes da percepção errônea da possibilidade de universalização do desenvolvimento. Vale ressaltar que as contribuições aqui citadas são do ano de 1974, data de lançamento da primeira edição do O Mito do Desenvolvimento Econômico. E, a despeito de ser uma obra escrita pouco antes do último quartil do século XX, apresenta-se bastante atual para uma leitura crítica do cenário em que vivemos.
Dentre os pontos levantados por Celso Furtado no livro, chama atenção sua constatação de que todos os processos econômicos geradores de valor provocam irreversíveis níveis de degradação do mundo físico.
A contribuição com que dialogo aqui diz respeito ao alerta feito por Celso Furtado sobre o caráter predatório do processo civilizatório, particularmente após a Revolução Industrial. E, dentre os pontos levantados por Celso Furtado no livro, chama atenção sua constatação de que todos os processos econômicos geradores de valor provocam irreversíveis níveis de degradação do mundo físico. Essa concepção serve para avaliarmos nossa atual estrutura produtiva, seja ela intensiva ou não em avanços (inovações) tecnológicos. Desde a urbanização sem planejamento até a necessidade contínua de elevar a produção de bens e a oferta de serviços, desde a busca intensa por novos recursos energéticos até as decisões por desmatamento em prol do aumento da produção de commodities, em todos os casos observa-se um elemento comum: estamos (a humanidade) forçando os limites da fronteira dos recursos naturais. Também como consequência desta ação predatória, observa-se mudanças de usos do solo e da natureza. O que assistimos é a troca de plantio e culturas voltadas à alimentação para a produção, por exemplo, de insumos. Mas a situação é mais séria.
Países altamente industrializados tornam-se sorvedouros de recursos naturais. São estruturas produtivas dependentes do uso predatório dos recursos naturais – convertidos em insumos básicos –, sejam próprios (disponíveis em seus territórios) sejam recursos disponíveis em outras fronteiras, notadamente em países de reduzido desenvolvimento do setor produtivo industrial (e com forte tendência a se constituírem em primários exportadores).
A consequência não pode ser tratada como mera especulação, pois já vivenciamos tais consequências oriundas de decisões tomadas no passado. Ao contrário, a realidade é bem fiel (e cruel) em nos indicar que já vivemos consequências de cunho irreversíveis. E somos obrigados a concordar com Celso Furtado quando este dizia que a nós cabe apenas reconhecer que a criação de valor econômico traz consequências no mundo físico e que não se pode mais ignorar tal fato. E que nem mesmo podemos confiar que a aceleração do progresso tecnológico pode ser um elemento com condições de atenuar os efeitos na humanidade.
Este desenvolvimento almejado pelas nações do planeta tem gerado – já há algum tempo – consequências na natureza. A obra de Celso Furtado é tão atemporal que os termos que ele utiliza em 1974 são típicos dos que se utiliza atualmente para destacar características do cenário: “encarecimento das fontes alternativas de energia”, “esgotamento” e “elevação da temperatura média em certas áreas do planeta”. São termos que podemos ler em qualquer relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) ou do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadem).
Não é difícil encontrar exemplos e situações em que se pode observar a concretização do alerta feito por Celso Furtado. Sabe-se que a ação humana tem causado modificações na natureza e nas suas diversas formas de manifestação. Secas extremas em algumas regiões, chuvas em excesso em outras, tempestades, desastres (talvez já não seja mais adequado chamá-los de naturais), epidemias, pandemias são exemplos de eventos que tem consequências diretas na população. Há literatura suficiente que indica que as populações que estão à margem, na periferia, em condições mais vulneráveis, de baixa renda são quem mais sofrem com tais eventos e suas repercussões.
Essa pressão sobre os recursos naturais reduz a capacidade de resiliência do ecossistema
O Brasil tem enfrentado uma série de eventos climáticos extremos associados à ação humana e à atividade produtiva. As secas severas registradas nas regiões Norte e Nordeste, intensificadas por desmatamentos e atividades agrícolas que causam uma redução na umidade do solo e, consequentemente, alteram os padrões climáticos na região. Essa pressão sobre os recursos naturais reduz a capacidade de resiliência do ecossistema, agravando cenários em que a população local passa a conviver com a escassez de água, comprometendo a agricultura local, essencial para a subsistência de muitas comunidades. A tendência do cenário exposto acima é acentuar situações de insegurança alimentar que aflige as populações das localidades.
As enchentes e deslizamentos nas regiões Sudeste e Sul constituem mais um exemplo. As cidades passam por processos de urbanização desordenada, com atividades de desmatamento e concretização dos solos. A concretização do solo ocorre quando o solo natural é substituído por superfícies impermeáveis, como concreto ou asfalto, especialmente em áreas urbanas. Esse processo impede a infiltração de água no solo, levando a um aumento do escoamento superficial, o que pode resultar em enchentes e erosão. Além disso, a concretização reduz a evapotranspiração e a absorção de água pelas plantas, contribuindo para o aquecimento das cidades por meio do efeito de ilha de calor. Esse processo tende a prejudicar o reabastecimento de aquíferos e reduz a qualidade do habitat urbano, afetando a fauna e a flora locais.
As chuvas intensas têm provocado desastres cada vez mais frequentes, causando destruição de infraestrutura e deixando comunidades inteiras em situação de risco iminente. Esses eventos destacam o impacto das decisões econômicas sobre o ambiente e a necessidade de políticas que priorizem a sustentabilidade e a resiliência climática.
Abaixo, apenas a título de ilustração, trago os dados sobre o impacto dos eventos da natureza na população.
Diante do exposto, é essencial reconhecer a contribuição de Celso Furtado sobre o impacto da atividade econômica capitalista no ambiente e na disponibilidade e uso de recursos naturais. O alerta a respeito do caráter predatório do modelo econômico global deveria gerar repercussão e reflexão na maneira como se tem tratado a exploração dos recursos naturais e no impacto que isso gera para o planeta e para populações vulneráveis.
A falta de planejamento e a sede por desenvolvimento replicam problemas estruturais que, mesmo com avanços tecnológicos, não se mostram sustentáveis em um contexto de mudanças climáticas e esgotamento de recursos.
Por fim, é inequívoca a necessidade de uma nova abordagem para o desenvolvimento, que vá além da mera imitação dos padrões industriais dos países desenvolvidos e considere um modelo econômico mais equilibrado, inclusivo e ambientalmente consciente. Em tempos de crise climática, o pensamento de Furtado apresenta-se como um provocar de reflexões que poderiam guiar políticas públicas capazes de atenuar as desigualdades socioeconômicas e preservar o meio ambiente.
*Alexandre Cesar Cunha Leite é docente da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), coordenador do GEPAP e do SACIAR, criador da Cozinha Solidária SACIAR (@_saciar). E-mail: [email protected].
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
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Edição: Carolina Ferreira