Paraíba

Coluna

Interseccionalidade no Brasil: desafios e perspectivas na luta por direitos humanos

"A interseccionalidade é uma forma de observar a realidade, ao reconhecer que indivíduos são perpassados por uma série de identidades sociais, como gênero, raça, classe, entre outros." - Agência Brasil
O Brasil ainda enfrenta desafios significativos no combate a problemas sistêmicos

Por Fabiana Montenegro Gonsalves*, Vitória Fernandes** e Xaman Minillo***

As eleições municipais de 2024, ocorridas em outubro, demonstraram resultados que podem ser preocupantes às minorias no Brasil. A força de partidos conservadores alinhados à direita, como o Partido Liberal (PL), foi demonstrada nas urnas, com a direita sendo eleita na maioria das capitais brasileiras. Em João Pessoa, viu-se a disputa no segundo turno entre dois candidatos com ideologias conservadoras de centro-direita e direita. Dois candidatos, salienta-se, homens e brancos, de alta renda e com presença histórica na política paraibana e nacional. 

O quadro da Câmara Municipal de João Pessoa também mostra-se preocupante: apenas duas mulheres foram eleitas para ocupar os cargos. E, vale ressaltar que uma delas é uma candidata que possui o slogan: “[...] sou cristã de direita, conservadora, anti-feminista, esposa e mãe dedicada. Minha fé e os valores familiares guiam minhas ações”. Essa frase é preocupante, pois levanta uma série de elementos que afetam o acesso à cidadania e plenos direitos a minorias. Exemplo disso é que é no ambiente doméstico, o espaço da família, onde ocorre a maioria dos casos de violência contra as mulheres. 

O respeito à diversidade religiosa também não é uma realidade. Ainda sobre a composição da Câmara, a outra candidata eleita é aliada ao prefeito, que, como citado acima, perpetua os valores de oligarquias brancas paraibanas. Para analisar criticamente tais discursos e alinhamentos, o conceito de interseccionalidade mostra-se crucial.

A interseccionalidade é uma forma de observar a realidade, ao reconhecer que indivíduos são perpassados por uma série de identidades sociais, como gênero, raça, classe, entre outros, que influenciam simultaneamente as experiências de desigualdade e discriminação. 

Durante o período entre o dia 5 e 16 de agosto, a relatora da Organização das Nações Unidas (ONU), Ashwini K.P, esteve no Brasil para realizar apurações quanto à realidade brasileira em matéria de direitos humanos e formas de discriminação étnico-racial no país. A relatoria especial, que compõe os Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU, destacou-se por um discurso amplamente apoiado na interseccionalidade. Embora tenha havido alguns avanços, o Brasil ainda enfrenta desafios significativos no combate a problemas sistêmicos, os quais encontram-se profundamente atrelados à necessidade do Estado atender a realidades multifacetadas.

Mulheres afrodescendentes, indígenas e pertencentes à comunidade LGBTQIA+ são particularmente vulneráveis a essa violência, revelando a intersecção como fator que agrava ainda mais essa realidade. 

A situação de mulheres de grupos raciais e étnicos racializados é um dos aspectos alarmantes sobre violência de gênero pontuados no relatório. Mulheres afrodescendentes, indígenas e pertencentes à comunidade LGBTQIA+ são particularmente vulneráveis a essa violência, revelando a intersecção como fator que agrava ainda mais essa realidade. De acordo com dados do Laboratório de Estudos de Feminicídio (LESFEM), cerca de cinco mulheres foram assassinadas por dia entre janeiro e junho de 2024, o que expõe uma realidade brutal.

Apesar de o governo federal ter implementado medidas de combate à violência de gênero, tais como a retomada do Programa Mulher Viver sem Violência, os esforços mostram-se insuficientes, pois o combate a esse tipo de violência envolvem medidas de combate à pobreza, à discriminação étnico-racial, à LGBTfobia, entre outros aspectos que transversalizam essa realidade. 

Ainda sobre os desafios enfrentados pelas mulheres no Brasil, Ashwini K.P destaca o panorama condenável dos direitos reprodutivos. O direito ao aborto legal e seguro é marcado por uma série de condicionalidades, que mesmo quanto atendidas, enfrentam barreiras que perpetuam a revitimização e a violência. A PL 1904, que equipara aborto após a 22ª semana de gestação à homicídio, é um claro exemplo ao qual o Estado não apenas falha em prover por esses direitos, mas também é arena de disputas políticas que ameaçam ainda mais o retrocesso das pautas. Tais obstáculos encontram-se bem mais presentes para mulheres racializadas, cujos direitos sexuais e reprodutivos são restringidos pela falta de acesso à saúde sexual e pela realidade socioeconômica de ocupações subvalorizadas e péssimas condições de trabalho. 

Ao abordar a temática religiosa, Ashwini aponta que o racismo que permeia as crenças individuais permanece em ascensão no Brasil, sendo perpetuado, especialmente, por agentes estatais e outros grupos da sociedade civil. Vê-se a perspectiva da interseccionalidade inserida nas questões do racismo religioso, posto que as religiões de matriz africana são as que mais sofrem ataques e ameaças no país. 

Além disso, ao tomar o recorte de gênero, as mulheres racializadas, que estão à frente de muitas das manifestações de religiões afro-brasileiras, acabam tornando-se alvos mais frequentes de atitudes intolerantes, desde agressões verbais até perda de direitos civis de forma injusta. Esse último fator escancara que o Estado é negligente quanto à problemática e, muitas vezes, falha em garantir direitos já previstos por legislação. O governo admite que tais problemáticas estruturais de racismo religioso e misoginia existem no país, porém não age de forma eficiente para mitigá-las e, por diversas vezes, perpetua e endossa esses comportamentos por meio de seus aparatos.

No relatório de Ashwini, é possível identificar as ponderações sobre o uso desproporcional da força policial nas ruas, bem como a crescente militarização dessa instituição.

É a partir dessa conjuntura que são tecidas críticas à atuação da polícia sob o amparo dos governos e do aparelho estatal. No relatório de Ashwini, é possível identificar as ponderações sobre o uso desproporcional da força policial nas ruas, bem como a crescente militarização dessa instituição. E essa violência também é direcionada a grupos minoritários, ferindo os seus direitos civis e configurando uma verdadeira necropolítica de Estado. Até mesmo os direitos à terra são infringidos cotidianamente no Brasil, seja pela ausência de reformas agrárias, monopólio latifundiário, até racismo e xenofobia contra populações indígenas. 

Historicamente, os governos falham em garantir e respeitar os direitos dos povos tradicionais brasileiros, especialmente devido aos jogos de interesse financeiro e ao legado colonial persistente nas instituições formais e informais. É em função desses fatores que os recortes de raça, gênero, sexualidade, religião e outros são necessários ao falar de violências e cerceamento de direitos, dado que as principais vítimas são alvos maiores em função das problemáticas estruturais que alicerçam o imaginário coletivo e as instituições que compõem os aparatos burocráticos.

Em meio aos constantes cenários de discriminação e violência, a denúncia contida no relatório de Ashwini, relatora da ONU, põe em destaque a necessidade abordar a interseccionalidade diante da garantia de direitos dos cidadãos brasileiros. Uma mulher preta e transgênero não pode ser menos merecedora de apoio burocrático do Estado para ter uma vida digna. A equidade está longe de ser alcançada no Brasil, principalmente porque, muitas das vezes, as violações de direitos são tratadas em enfoques restritivos, desconsiderando outras variáveis conjunturais que influenciam essa pauta.

As discussões feministas sem recorte de etnia ou renda privilegiam um grupo específico de mulheres em detrimento de outras e enfraquece as reivindicações perante o governo. É importante, assim, destacar a conexão entre as muitas lutas ao impulsionar os problemas públicos na agenda do Estado, tendo em vista que a garantia dos direitos e a formulação das políticas públicas demanda uma perspectiva crítica e abrangente.

*Fabiana Montenegro Gonsalves é estudante do sétimo período do curso de Relações Internacionais da UFPB. Atua com foco em pesquisa sobre direitos sexuais e reprodutivos e é membro do projeto de extensão Diálogo GENERI - Diálogo de Gênero nas Relações Internacionais.

**Vitória de Souza Fernandes é concluinte do curso de Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba. Atuou como colunista no Observatório de Internacionalização Descentralizada em Foco (IDeF). Atualmente, é membro do projeto de extensão Diálogo GENERI - Diálogo de Gênero nas Relações Internacionais e realiza pesquisa acerca dos problemas de internacionalização de políticas públicas no GIPCI.

***Xaman Minillo é docente e coordenadora do curso de graduação em Relações Internacionais da UFPB, membro do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais – PPGCPRI UFPB. Trabalha com temas de políticas sexuais e de gênero, estudos queer e decoloniais, feminismos e ativismos LGBTQ+ africanos e indígenas. Coordena o grupo de estudos de Políticas Sexuais Internacionais – PoliSexI, e é responsável pelo projeto de extensão Diálogo GENERI - Diálogo de Gênero nas Relações Internacionais. Contribui para a promoção da igualdade de gênero na comunidade acadêmica em suas pesquisas, aulas, e como membro do grupo MulheRIs e co-coordenadora da Rede Latino-Americana MulheRIs+MujeRIs.

****Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB
 
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Edição: Carolina Ferreira