O filme mostra que a ditadura militar brasileira foi um instrumento de promoção da desumanização
Por Fernando Domingos*
Fiz uma pausa e fui com meu companheiro ver a sessão de estreia de 'Ainda Estou Aqui'. Aviso que meu repertório técnico é limitado, deixando essa outra análise para críticos experientes. Neste texto, falo como historiador e pessoa humana que sou.
Numa perspectiva histórica, o roteiro do filme é rico e denso em detalhes, contudo, envolvente e comovente. Por isso, consegue guiar o público por uma jornada de reflexão profunda sobre o Brasil. Vale lembrar que o filme de Walter Salles é inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva.
'Ainda Estou Aqui' rompe com a obviedade porque a dor precisou ser acolhida e vivida de uma(s) outra(s) maneira(s)
O ponto de partida é o cotidiano de uma família que tem sua rotina violentamente interrompida. Aos poucos, o dia a dia da cidade do Rio de Janeiro e o da família vai sendo atravessado por outras rupturas bruscas e violências protagonizadas pela ditadura militar.
Gradualmente, a leveza e alegria daquela casa vão sendo capturadas, até que as cortinas se fecham, impedindo que a luz do sol anuncie um novo dia. Enquanto a vida tenta seguir, uma sequência de prisões, exílios (alguns não conscientes), interrogatórios, torturas, mortes e ocultação de corpos se sobrepõem como parte de um outro cotidiano, sentido e vivido por alguns, mas não por todos.
Fiquei profundamente emocionado com o “não dito”, com “o choro que não foi visto” e com “a dor que não foi vivida” diante das lentes e diante dos filhos de Eunice. 'Ainda Estou Aqui” rompe com a obviedade porque a dor precisou ser acolhida e vivida de uma(s) outra(s) maneira(s). Uma vivência pode ser constituída por muitas outras temporalidades e camadas, estas que, por sua vez, não se deixam ser capturadas por expectativa ou obviedade alguma.
Diante da tortura, o silêncio, o não dito e o sorriso são como estratégias para que a vida pudesse de alguma forma encontrar caminhos para sobreviver ao caos e à experiência indescritível de ter sua família como alvo de um projeto político de desumanização. “É preciso dar um jeito, meu amigo”.
A memória da tortura não se curva ao tempo. Sobreviver à tortura é possível? Como a gente lida com a negação do direito ao luto?
Não sei se estou certo disso, mas deduzi que o filme não foi pensado apenas para “nós outros”. O filme não alcançará apenas os amantes da sétima arte ou um público que defende e ama a democracia. Penso que esse filme também foi feito para ser visto pelos torturadores. Explico: em meio às inomináveis violências, continuar vivendo é preciso. Mas como?
É aí que o público espera o óbvio, pois a obviedade do drama tem sua própria sequência e estética. Mas estas, aqui, foram modificadas, e o ato de viver o drama já não é mais o mesmo. É possível sobreviver à tortura? 'Ainda Estou Aqui' responde enfaticamente: é necessário sobreviver à tortura. É necessário resistir. É necessário sorrir: “Sorriam!”
Sorrir é mais que resistir. Sorrir é ser subversivo! Sorrir é romper com a lógica da tortura da ditadura militar. Sorrir é uma reafirmação que apenas os sobreviventes e as famílias daqueles que foram torturados e assassinados pela ditadura militar podem fazer na cara do torturador. E quando assim o fazem, estão dizendo: 'Ainda Estou Aqui', teimando, lutando e vivendo por justiça.
Não chorar não significa não sentir dor. A lágrima não secou; ela está ali. “Não é necessário chorar para sofrer”, como bem disse Dilma Rousseff.
O sorriso de uma família que foi sequestrada e torturada por militares não é apenas um ato de resistência. Repito, sorrir é pura subversão da lógica do regime militar. O enfrentamento à ditadura e a luta por justiça são abordados em 'Ainda Estou Aqui' através de um fio condutor sensível que atravessa o tempo. O próprio filme se constitui, em si, como uma continuidade desse sorriso, dessa luta e dessa vida por justiça.
As descontinuidades, os cortes e as rupturas nas cenas, o não acesso completo ao medo, a não captura completa da experiência de dor e o não enquadramento do desespero são propositalmente executados. Não porque não cabem na tela, nem porque as pessoas que estão assistindo não suportariam. O motivo é outro: 'Ainda Estou Aqui', além de ser uma obra de arte, também é discurso e ato político.
Do mesmo modo, a família que foi privada de velar e sepultar o corpo de Rubens Paiva é a mesma que não chora diante da tortura, que não se entrega ao luto. Logo, o que um torturador mais anseia é assistir à dor, testemunhar o desespero, celebrar a angústia de quem foi sequestrado. Pois a memória da tortura sequestra quem foi alvo da barbaridade, e esta não se encerrou com a campanha pelas 'Diretas Já', nem mesmo com a Constituição Cidadã de 1988.
No lugar da rendição diante da barbárie, temos a celebração da vida. Diante do sequestro e das perseguições, temos um banho de mar, uma taça de sorvete. Diante da tortura, do assassinato e da ocultação de cadáveres, temos uma família reunida à mesa. Diante da estrutura e logística da ditadura militar, temos uma mulher lutando por justiça.
'Ainda Estou Aqui' comunica que a memória da tortura permanece viva, mesmo quando a faculdade da lembrança não é mais a mesma. Para sobreviventes, sempre haverá um “lugar de memória”. Mesmo com o passar do tempo e com uma doença neurodegenerativa que compromete as funções mentais, o sorriso desenhado no rosto de quem sobrevive tem o poder de fazer ruir a estrutura política da ditadura militar que usou a tortura como instrumento de controle. Mesmo assim, ela foi derrotada, condenada publicamente por seus crimes.
O motivo é outro: 'Ainda Estou Aqui', além de ser uma obra de arte, também é discurso e ato político.
Não lembro de outro filme que tenha me causado tal impacto ao abordar essa temática. 'Ainda Estou Aqui' conseguiu traduzir para o mundo que a ditadura militar brasileira foi um instrumento de promoção da desumanização, tal qual foi o nazismo alemão. Mais do que isso, os sobreviventes da ditadura militar, por meio de sua luta, sobrevivência e experiência, dialogam com o mundo, denunciando investidas totalitárias e projetos políticos autoritários que insistem em querer sequestrar nosso futuro.
Muito obrigado, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva.
*Fernando Domingos de Aguiar Júnior é Colaborador do MEL e Membro do Fórum OnG AIDS. É mestre e doutorando pela FioCruz, na Área de História da Epidemia de AIDS na Paraíba.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - PB
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Edição: Cida Alves