A expressividade decolonial não poderia ser outra: a poética da negritude
Por Elio Flores*
Uma regionalidade poética pode ser definida como uma categoria de análise que aciona, metodologicamente, documentos literários, artísticos e culturais a partir de autores, textos e obras. Aqui, a pretensão é trazer em perspectiva a regionalidade afro-caribenha de Aimé Césaire e de seu monumental poema-livro, Diário de um Retorno ao País Natal; e, da regionalidade afro-gaúcha/brasileira, pela obra seminal de Oliveira Silveira, Poema sobre Palmares. A expressividade decolonial não poderia ser outra: a poética da negritude.
Aimé Fernand David Césaire nasceu em Basse-Pointe, no interior da Martinica, no ano de 1913. Poeta, dramaturgo, ensaísta e político, tornou-se um dos intelectuais negros mais importantes do século XX. No ano de 1931, foi para a capital do império francês realizar estudos superiores.
Em Paris, Aimé Césaire, junto com Leopold Senghor (Senegal), Léon-Gontram Damas (Guiana Francesa) e Suzanne Roussi, depois Césaire (Martinica), também estudantes, fundou o jornal L’étudiant noir [O estudante negro] no ano de 1934. No ano seguinte, Césaire começa a rascunhar o que seria depois a sua obra mais comentada, Cahier d’un Retour au Pays Natal (com edições em 1939, 1947 e 1956). O conceito de negritude aparece tanto no jornal quanto nos primeiros rascunhos da obra: “busca dramática pela identidade negra”.
No ano de 1939, já casado com Suzanne Césaire, faz a viagem da volta para a Martinica, onde o casal entrou para a carreira docente e continuou o ofício da literatura. Aimé, Suzanne e René Ménil fundaram a revista cultural Tropiques, ativa entre 1942 e 1945, e que sofreu censura do governo colaboracionista e nazista francês.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, Aimé Césaire entrou para a política, sendo várias vezes eleito prefeito da capital da Martinica, Fort-de-France (1945-2001), deputado da assembleia nacional francesa pelo Partido Comunista Francês (PCF). O mundo das Antilhas, reivindicações por autonomia e o neocolonialismo fizeram Césaire sair do partido e fundar uma espécie de regionalidade política, o Partido Progressista Martiniquês, com mandato de deputado até 1993.
Aimé Césaire não deixou de intensificar as suas “políticas da escrita”. Na poesia surgiram, entre outras obras, Armas Miraculosas (1946), Eu, laminaria... Últimos poemas (1982), A Poesia (1994). Na dramaturgia, o teatro épico descortina a crueza do colonialismo: E os Cães se Calavam (1958), A Tragédia do Rei Christophe (1963), Uma Temporada no Congo (1966), A Tempestade de William Shakespeare: uma adaptação ao teatro negro (1969). Ensaios políticos e densas metáforas do fato colonial se avolumaram: Escravidão e Colonização (1948), Discurso sobre o Colonialismo (1955), Discurso sobre a Negritude (1987). Uma obra historiográfica foi assinada para contar a história do herói que aparece no Diário..., justamente Toussaint Louverture, a revolução francesa e o problema colonial (1962).
Oliveira Ferreira Silveira nasceu em 1941, em Rosário do Sul (RS), muito próximo da fronteira com o Uruguai. Foi lá que se interessou pelas letras e os causos gaúchos de mateadores e campeiros da lida rural. No final da década de 1950 muda-se para a capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, para seguir estudos. Assim, ao mesmo tempo que publicava sua poesia de temas afro-gaúchos, ele mesmo grifou que se graduou em “Letras – Português e Francês com as respectivas literaturas”, pela UFRGS. Oliveira Silveira tornou-se docente de português e literatura no ensino médio. Também exerceu o jornalismo como ativista do movimento negro. Entre esforços de solidez poética, vieram a lume: Germinou (1962), Poemas Regionais (1968), Décima do Negro Peão (1974), Pelo Escuro: poemas afro-gaúchos (1968-1977).
: UFRGS concede a Oliveira Silveira título de Doutor Honoris Causa :
Oliveira Silveira amontoava manuscritos de um mesmo poema e juntava poesia nova para formar uma obra. Parece que assim surgiu o seu grande épico Poema sobre Palmares (1972-1987) que, temporalmente, chega às favelas contemporâneas, “quilombo de negro pobre”; e, espacialmente, o poema se aquilomba nas regionalidades brasileiras. Explosões de negritude vibram as páginas de Anotações à Margem (1967-1994), Banzo, saudade negra (1970), Praça da Palavra (1962-1976), Roteiro dos Tantãs (1981) e Orixás – pintura e poesia (1995).
Na década de 1970, Oliveira Silveira organizou e foi ativo no Grupo Palmares, que mobilizou Porto Alegre para eventos sobre o 20 de novembro e a expressividade política de Zumbi dos Palmares como liderança negra que resiste e enfrenta a escravidão colonial. Para ele, o 13 de maio (de 1888) havia sido a farsa branca da história brasileira ao passo que o 20 de novembro, dia do assassinato de Zumbi dos Palmares (no ano de 1695), significava o evento dramático da coletividade negra (e quilombola) na América portuguesa.
Em artigos na imprensa, na poesia, nos grupos de estudos e nas atividades sociais o Grupo Palmares, Oliveira Silveira passou a defender o 20 de novembro como a data histórica para a população negra pensar a sua própria história no Brasil. Sabemos que, mais do que números, as “datas são pontas de icebergs” − a expressão é de Alfredo Bosi – metáfora que Oliveira Silveira reconfigurou ao “cortar e destacar” aqueles quilombos submersos e invisíveis na historiografia brasileira. O MNU – Movimento Negro Unificado, fundado em 1978, adotou o 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra.
Com efeito, isso tudo, para Oliveira Silveira, já era uma apropriação dos autores e textos da negritude que ele acessou por meio de aulas de literatura e pesquisa assentada no que se considerava “autores negros”, como os afro-caribenhos Aimé Césaire, André Depestre, o norte-americano Langston Hughes e o africano Leopold Senghor. Essa proximidade e afinidade eletiva o levou a iniciar a tradução da obra de Césaire, Diário de um Retorno ao País Natal, por volta de 1971.
Oliveira Silveira chegou a publicar uma apresentação de Aimé Césaire no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, onde conclui que “é hora de tentarmos um contato também com Césaire, embora sob a precariedade de uma tradução”, depois de saudar a edição em português do livro de Leopold Senghor, Poemas (Grifo Edições, 1969). A tradução da obra de Aimé Césaire ficou incompleta, porém marca o registro da negritude em uma regionalidade específica do Brasil meridional e as autorias negras num estado considerado “o mais ariano do Brasil”, o Rio Grande do Sul. Uma definição importante para o organizador de sua obra reunida, Ronald Augusto, “a tradução como desempenho”.
Cumprimos aqui a citação da regionalidade poética caribenha, a partir da estrofe 43, e da sua intensa geografia da negritude:
O que é meu, esses vários milhares de mortiferados que giram em torno da cabaça de uma ilha e o que é meu também, o arquipélago arqueado como o desejo inquieto de negar-se, dir-se-ia uma ânsia materna de proteger a tenuidade tão delicada que separa uma da outra América; e seus flancos que destilam para a Europa o bom licor de um Gulf Stream, e uma das duas vertentes de incandescência entre as quais o Equador funambula em direção à África. E a minha ilha não fechada, sua clara audácia de pé na popa dessa polinésia, diante dela, Guadalupe fendida em duas por sua linha dorsal e de igual miséria à nossa, Haiti onde a negritude pôs-se de pé pela primeira vez e disse que acreditava na sua humanidade e a cômica pequena cauda da Flórida onde de um negro se consuma o estrangulamento e a África gigantescamente arrastando-se até o pé hispânico da Europa, sua nudez em que a Morte ceifa com movimentos largos (Césaire, [1939/1956], 2012, verso 43, p. 30-31).
Da mesma forma, também cumprimos a citação de uma estrofe da regionalidade gaúcha/brasileira, que produz o tempo refigurado da negritude quilombola:
Nos pés ainda tenho correntes,
nas mãos ainda levo algemas
e no pescoço gargalheira,
na alma um pouco de banzo,
mas antes que ele me tome,
quebro tudo, me sumo na noite
da cor da minha pele,
me embrenho no mato
dos pelos do corpo,
nado no rio longo
do sangue,
vôo nas asas negras
da alma,
regrido na floresta
dos séculos,
encontro meus irmãos,
é Palmar,
estou salvo!
(...)
Quilombo de negro negro,
quem quiser que se negue
e se entregue.
Quilombo de negro pobre
e quem quiser que se acomode.
Quilombo de negro hoje
sem mato para refúgio.
Quilombo com outro nome,
outra forma e mesma voz
libertária de homem.
Quilombo de quilombola
renascendo na seiva
sangrenta
da história (Silveira, 1972-1987, p. 1, 16).
Os dois poemas são livros e custaram temporalidades suadas para seus autores. Aimé Césaire levou mais de vinte anos para dar por definitivo o Diário de um Retorno ao País Natal. Oliveira Silveira gastou 15 anos e “muitas tentativas” para finalizar Poema sobre Palmares. Poemas/Obras/Livros. Onde a negritude se alavanca a partir de dois heróis trágicos: o negro escravizado (e depois livre) Toussaint Loverture, “a morte expira numa branca poça de silêncio”; e, o negro escravizado (e depois livre) Zumbi dos Palmares, “o sangue humus derramado/ de Zumbi e dos seus,/ de Zumbi e dos meus”.
A professora e pesquisadora paraibana Elisalva Madruga, especialista em literaturas brasileiras e africanas, considerou a negritude de Aimé Césaire e de Oliveira Silveira, a partir das palavras do primeiro, como “uma postulação irritada e impaciente da fraternidade”. As também prometeicas liberdade e igualdade ainda estão lá, no outro lado do muro. Entretanto, mais do que um verbo transitivo direto (e pronominal), esperançar é preciso!
Para saber mais
AUGUSTO, Ronald. Oliveira Silveira, a palavra está firme – poesia reunida. In: SILVEIRA, Oliveira. Obra Reunida. Organização: Ronald Augusto. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro/Corag, 2012, p. 17-34.
CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un Retour au Pays Natal/Diário de um Retorno ao País Natal. Edição Bilíngue (Francês e Português). Tradução, Posfácio e Notas: Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: EDUSP, 2012.
CÉSAIRE, Aimé. Textos Escolhidos: a tragédia do rei Christophe; discurso sobre o colonialismo; discurso sobre a negritude. Tradução: Sebastião Nascimento. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2022.
DANTAS, Elisalva Madruga. A negritude poética do gaúcho Oliveira Silveira. Revista de Letras. Fortaleza, UFC, n.º 28, vol 1/2, jan-dez, 2006, p. 74-77.http://www.periodicos.ufc.br/revletras/article/view/2318
SILVEIRA, Oliveira. Poema sobre Palmares. Porto Alegre: Edição do Autor, 1987.
*Elio Flores é pesquisador associado do NEABI/CCHLA/UFPB. Foi professor de história da África do DH/UFPB e pesquisador do CNPq com projetos sobre intelectuais africanos e afro-brasileiros. Autor de Afro-Clio: direitos humanos, história da África e outras artesanias (2019) e Visões da África, cultura histórica e afro-brasilidades (2016).
**Este artigo foi em parte comunicado na FliParaíba 2024, na Mesa 8 – Herança e Memória: presenças e sabenças indígenas e africanas na literatura, no dia 30 de novembro, na Capela do Centro Cultural São Francisco. Participaram da mesa: Trudruá Dorrico (RO), Rinah Souto (PB) e Elio Flores (PB).
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Edição: Carolina Ferreira