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Calcinha Preta e o passado mal resolvido do Brasil 

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Invasão ao Congresso, STF e Palácio do Planalto em 8 de janeirode 2023. - © Joedson Alves/Agencia Brasil
A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 é filha direta do golpe de 1964

Por Joel Martins Cavalcante*

 

Dias atrás, estive em Recife para um encontro nacional de educação em direitos humanos. Três dias intensos de trocas de saberes, escuta atenta e reflexão profunda sobre o Brasil que temos e o Brasil que queremos. Enquanto absorvia tudo aquilo, me vi fazendo uma ponte entre o passado, o presente e a música que tocava no rádio do Uber que me levava de Boa Viagem ao Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, em Casa Forte. Calcinha Preta cantava: "Mas é passado, já ficou pra trás, não quero mais ouvir sua voz." 

No mesmo instante, aquilo ficou martelando na minha cabeça. Afinal, é exatamente assim que o Brasil tem tratado sua própria história. Uma negação constante, uma tentativa desesperada de silenciar vozes que ainda ecoam das profundezas da escravidão, da ditadura, dos golpes. 

"O passado já ficou pra trás." Será mesmo? 

O encontro que participei trouxe à tona muitas dessas questões. Falamos sobre a fragilidade da nossa democracia, sobre as feridas abertas do racismo estrutural, das desigualdades, dos preconceitos que se perpetuam como se fossem parte natural do nosso cotidiano. Tudo isso são ecos de um passado que nunca foi devidamente enfrentado. 

Enquanto o Brasil assistia perplexo ao indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de militares envolvidos na tentativa de golpe, éramos lembrados de que essa trama não surgiu do nada. Golpes fazem parte da nossa história. O último grande golpe nos mergulhou em 21 anos de ditadura, com torturas, mortes, silenciamento. E o que fizemos quando a democracia foi restaurada? Concedemos anistia. 

Anistia. Uma palavra que deveria simbolizar perdão e recomeço, mas que, no Brasil, significa esquecimento e continuidade. Não punimos nossos torturadores, diferente de outros países da América Latina. E por não resolvermos esse passado, ele insiste em voltar. 

No Uber, enquanto a melodia de Calcinha Preta seguia, pensei: se a elite brasileira pudesse escolher um refrão para sua narrativa, seria esse: "O passado já ficou pra trás, não quero mais ouvir sua voz." 

Mas negar o passado é como um paciente que chega ao consultório do terapeuta e recusa falar da infância que o traumatizou. Sem encarar a origem da dor, não há cura. 

O racismo que nos corrói diariamente é a herança mal resolvida da escravidão. A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 é filha direta do golpe de 1964, que nunca foi devidamente enfrentado. E agora, mais uma vez, ouvimos vozes pedindo anistia. 

E nós? Vamos mais uma vez dizer que "já ficou pra trás"? 

Não, o passado não ficou para trás. Ele está aqui, nos olhando nos olhos, pedindo para ser ouvido, compreendido, transformado. Ignorar sua voz é impedir o Brasil de avançar. É deixar que as mesmas feridas se abram, vez após vez. 

Se queremos um futuro justo, precisamos parar de cantar que o passado ficou pra trás. Precisamos ouvi-lo. Só assim construiremos um presente que honre a luta dos que vieram antes de nós — e um futuro onde todos possam existir com dignidade. 

Porque o passado não é só memória. Ele é alerta. E ignorá-lo é repetir os mesmos erros. 

 

*Joel Martins Cavalcante é professor de História da rede estadual de ensino da Paraíba, membro da diretoria do SINTEP-PB e CUT-PB e militante dos Direitos Humanos e do Movimento Brasil Popular.

**A opinião contida neste texto não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Paraíba.

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Edição: Heloisa de Sousa