A história e conceituação dos direitos humanos são marcadas por inconsistências
Por Líndice Souza* e Xaman Minillo**
O 10 de dezembro é o Dia Internacional dos Direitos Humanos, e marca o fim da campanha internacional “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres” – uma mobilização global dos Estados e da sociedade civil em torno desse propósito. Numa data como essa, é importante refletirmos sobre os ideais que envolvem a ideia de “direitos humanos” e considerá-los à luz das práticas em nossa sociedade.
Para isso, relembramos um caso em específico: a enxurrada de acusações de assédio sexual veiculadas no início de setembro (09/2024) contra o então Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. As denúncias sobre essa violação dos direitos humanos de diversas mulheres mostraram-se altas em número e gravidade, apresentando situações que atestam abuso de poder, assédio moral e físico, entre outros: seis mulheres já denunciaram o ex-ministro, dentre elas Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial.
: Reflexões sobre assédio sexual e demissão do ministro dos Direitos Humanos :
Sendo um homem negro reconhecido por sua extensa trajetória na luta pela igualdade racial e pelos direitos humanos, o ex-ministro definiu-se como homem casado, pai de menina e ativista para atestar que alguém como ele jamais realizaria assédio sexual. Seu discurso demonstra uma retórica estratégica, baseada na apresentação de credenciais que supostamente atestam sua credibilidade como alguém que não poderia violar os direitos de outras pessoas, mais especificamente, de mulheres. Isto é, um homem, ativista social, casado e pai de menina violaria direitos femininos? O recente caso da francesa Gisèle Pélicot, que passou pelo horror de ser drogada pelo marido e abusada por mais de 50 homens por anos, demonstrou como não há um perfil de abusador. A característica que une os abusadores é a prática do abuso.
O ex-ministro procurou atestar sua inocência com base em estereótipos atrelados à sua trajetória como alguém que cumpre os requisitos para ser um cidadão modelo em nossa sociedade, que “tem conhecimento e respeito” pelos “direitos humanos”. No entanto, salientar que ocupa as posições de homem, esposo e pai, títulos extremamente respeitados em nossa sociedade sexista e heteronormativa, não nos oferece garantia de sua inocência, mas visibiliza como tais características são valorizadas e podem ser valiosas fontes de legitimidade para quem está sob o escrutínio público. As características e títulos elencados não tiram a força das denúncias nem mitigam os fortes relatos dessas múltiplas mulheres. Pelo contrário, seu uso estratégico nesse momento mina o benefício da dúvida que poderia ser dado ao ex-ministro ao procurar deslocar o foco da questão das denúncias de abuso para suas credenciais.
Os ideais que baseiam o que conhecemos como direitos humanos remontam a uma linha de pensamento que afirma que cada ser humano nasce com um conjunto de direitos inerentes a si, independente de características como raça, classe, gênero, sexualidade e nacionalidade. No cenário global, a Organização das Nações Unidas (ONU) foi responsável pela difusão do conceito lançando, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). A DUDH, desde sua primeira publicação, já apresentava problemas relacionados à questão de gênero: a definição de “direitos humanos” foi estabelecida como equivalente ao “direito do homem”.
A história e conceituação dos direitos humanos são marcadas por inconsistências. A influência de Immanuel Kant, por exemplo, é uma das mais significativas na construção do pensamento moderno sobre ética, moralidade e direitos humanos conectadas à racionalidade. No entanto, suas visões preconceituosas sobre certos grupos transparecem em seus escritos sobre a superioridade do homem sobre a mulher e da raça branca sobre todas as outras raças, revelando um paradoxo em seu fundamento e falhas em suas aspirações universalistas. Como pode um conceito que se propõe a defender a dignidade e a igualdade de todos os seres humanos ter raízes em uma filosofia que, em sua essência, perpetua desigualdades? Isso pode fazer sentido apenas se restringirmos o reconhecimento de humanidade para alguns.
O trabalho desenvolvido pela ONU ao propagar a necessidade da garantia plena dos direitos humanos também é marcado por lacunas. O reconhecimento da diversidade sexual, por exemplo, não foi explicitamente contemplado na DUDH. No artigo 2º, que afirma que todo ser humano deve gozar os direitos e as liberdades estabelecidos no documento independente de “raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política”, sendo subsumido como “qualquer outra condição”. Essa lacuna é característica de um momento histórico, e vem sendo suprida gradualmente por meio de outros instrumentos - uma agenda que ainda enfrenta desafios e cujo avanço não é garantido. Mas os impactos das práticas históricas em escala global e em nossa sociedade não podem ser omitidos. Eles levantam questões sobre a universalidade dos direitos humanos: são eles realmente para todos e todas? São eles para todes? A rejeição de um pequeno tensionamento da norma gramatical já pode ser uma resposta negativa.
Nossa história formal é uma história de conquista colonial. Nosso Estado é o resultado de um passado de grandes navegações e da conquista e colonização realizada por homens europeus que dizimaram os povos locais e traficaram pessoas para realizarem trabalho escravo. Diferenças de cor e de origem foram traduzidas como hierarquias, sendo os não brancos codificados como inferiores, menos humanos. Essas desigualdades afetam a credibilidade do ex-ministro.
No entanto, além das desigualdades de raça, a cultura moderna ocidental também negou o reconhecimento pleno da humanidade das mulheres. Categorizadas sob o gênero feminino, são posicionadas na hierarquia político-social abaixo dos indivíduos que expressam a masculinidade alinhada ao seu gênero. Mesmo aqueles não brancos. Às mulheres não brancas, então, além de não terem os requisitos de gênero, também por sua cor foram excluídas da categoria do humano, invisibilizadas duplamente. Como é possível pensar os direitos humanos em uma sociedade construída a partir de um projeto que nega a humanidade da maior parte da população? Nesse contexto, é possível garantir os direitos humanos de mulheres atravessadas pelos mais diversos recortes sociais como raça, gênero, sexualidade e renda?
No momento em que o ex-ministro Silvio Almeida se coloca como um homem negro, ativista, casado e pai de menina, com conhecimento que o permite respeitar as pessoas, ele está reclamando uma posição moralmente superior àquela das mulheres que o acusaram de assédio.
Em nossa sociedade , homens foram ensinados – direta ou indiretamente – que são superiores e, dotados de uma humanidade que é negada às mulheres. Desigualdade que é complexificada pelos outros eixos que transformam diferenças em hierarquias. Isso nos mostra a fragilidade de se pensar em direitos humanos como algo universal sem atentar para a complexa teia de desigualdades que se entrelaçam e de forma interseccional e transformam o acesso a direitos em privilégio. A invisibilização que ocorre a partir da naturalização de uma suposta superioridade masculina promove e perpetua a desigualdade e a violência contra mulheres. Não reconhecer as hierarquias que dificultam o acesso à humanidade para diferentes grupos sociais de forma interseccional deturpa o ideário lípido dos direitos humanos. Para que a justiça seja promovida é necessário reconhecer como este horizonte é, em verdade, muito mais nublado do que se afirma por aí.
*Líndice Beatriz Souza é discente do curso de Relações Internacionais da UFPB. Atualmente, é bolsista de extensão e coordena o projeto Diálogo GENERI. Desenvolve pesquisa na área de Economia do Cuidado, com interesse especial nas áreas de cooperação internacional e políticas públicas. Estagiou como coordenadora de pesquisa do grupo de estudos de Políticas Sexuais Internacionais – PoliSexI, e assistente auxiliar na Rede Latino-Americana MulheRIs+MujeRIs.
**Xaman Minillo é docente e coordenadora do curso de graduação em Relações Internacionais da UFPB, membro do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais – PPGCPRI UFPB. Trabalha com temas de políticas sexuais e de gênero, estudos queer e decoloniais, feminismos e ativismos LGBTQ+ africanos e indígenas. Coordena o grupo de estudos de Políticas Sexuais Internacionais – PoliSexI, e é responsável pelo projeto de extensão Diálogo GENERI. Contribui para a promoção da igualdade de gênero na comunidade acadêmica em suas pesquisas, aulas, e como membro do grupo MulheRIs e co-coordenadora da Rede Latino-Americana MulheRIs+MujeRIs.
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Edição: Carolina Ferreira