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Jesus e Exu

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Entre a culpa e o prazer: reflexões sobre espiritualidade, humanidade e liberdade

Por: Joel Martins Cavalcante*

Acabei de sair da terapia. Faz mais de um ano que estou com o atual psicanalista. O procurei, a partir da indicação de uma amiga, por três motivos: o preço, as sessões serem remotas e para tratar minhas ansiedades. Está dando certo.

Dias atrás, depois dos prolegômenos, falamos sobre álcool, culpa, evolução. Temas recorrentes nas sessões. A dimensão religiosa é indissociável do meu ser. Já tentei me desligar, mas sempre busco o religare. Não da mesma forma que na minha adolescência, mas de um jeito ou outro, tem relação com a mesma busca do sagrado, do sobrenatural, dos fenômenos para além do olho nu.

O reino de Jesus possibilita uma transformação social, política e interior contra estruturas opressoras

Em determinado momento da terapia, na fala sobre culpa a partir do meu desejo de largar, de uma vez por todas, a bebida alcoólica, ele me disse que eu tenho que achar uma equação que não coloque a culpa por ter ingerido álcool em uma social, por exemplo.

Lembrei de Exu. Esses dias, vi um post no Instagram com o título: “Coisas que te aproximam de Exu”. Em um dos cards, falava sobre valorizar o prazer e a liberdade. Sexo, orgasmos, dinheiro, a arte, a nudez, os palavrões, os prazeres mundanos devem ser vividos.

Exu, como senhor da rua, dos caminhos, das andanças, valoriza por demais a liberdade e o prazer.

Na minha conversa, como quase sempre, fiz a comparação religiosa com os aspectos da minha vida. Nesse momento mais específico, falei do desejo de deixar o desejo pelo álcool e, avaliando a partir daí, como o espiritismo, por exemplo, acaba influenciando esse desiderato e outros, como a limitação pelo sexo e outros prazeres carnais também.

No decorrer da sessão, partimos para a ideia de deixar o aspecto animalesco do meu ser para me tornar humano, evoluído, como prega o espiritismo. A doutrina de Kardec não tem a noção de pecado, mas substitui por outra coisa, talvez tão pesada quanto. O conceito de reforma íntima e crescimento espiritual envolve abdicar dos desejos carnais, animalescos, os prazeres mais primitivos rumo à evolução.

E aí, o terapeuta pergunta: o que é ser humano? Eu, juntamente com ele, refletimos sobre essa questão. No fundo, deixar o humano, demasiado humano, para ser ser humano. Ora, existe algo mais humano do que os prazeres carnais?

Aí lá vou eu: se fosse tão ruim os desejos, por que Deus criou o ser humano com eles? Fiz outra associação a Ojuara, de “O Homem que Desafiou o Diabo”, na sua defesa da safadeza.

Falei de Eva e Adão. Por que deixar aquela árvore lá? Igual a um pai que deixa dois bolos para uma criança: um de chocolate e outro normal, e diz que a criança deve comer o bolo normal. Mas deixa o de chocolate próximo. O que a criança faz?

Lembro de Exu e Jesus. Esse ano foi um ano incrível para mim. Em todos os aspectos. Hoje, me permito errar, fazendo comparação com Exu, e estou aprendendo a vivenciar minha humanidade de forma mais humana, sem pecado e sem juízo, como cantava Baby do Brasil antes de virar a crente que discute o apocalipse com Ivete Sangalo no carnaval de Salvador.

O Jesus construído pelo cristianismo difere muito de Exu. A Igreja Católica, todo dia nas missas, começa a celebração com a contrição, o pedido de perdão dos fiéis, para bem participar da ritualística. Hoje, ainda que goste das missas — quase todo dia vejo pelo YouTube uma em outra língua —, não consigo acreditar mais na necessidade constante do pedido de perdão a Deus pelas coisas humanas.

Na sessão, refleti, claro, que existe um limite para vivenciar os prazeres. Minha liberdade não deve cercear os direitos de outros. A legislação impõe regras para casamentos, relações e tal. O contrato social coloca esses limites. Para além desses, a religião coloca vários outros. Para ser o ser humano ideal, tem que deixar os prazeres humanos.

Mas o Jesus, mesmo o relatado nos evangelhos, parece ser bem diferente. Ora, se a doença e a morte são algo bom para purificar a alma, por que Jesus curou cegos, deficientes físicos, “leprosos” e ressuscitou mortos? A pulsão de vida em Jesus é maior do que a pulsão de morte que seus seguidores, ao institucionalizar seus ensinamentos, colocaram.

Ao restaurar a saúde e a vida das pessoas, Jesus devolveu-lhes o prazer. Né não?

Ele bebia e comia bem. O primeiro milagre foi transformar água em vinho. Para quê?

O reino de Jesus possibilita uma transformação social, política e interior contra estruturas opressoras, em todos os sentidos, para uma vida plena. Parece Exu em seus caminhos de prazer e liberdade.

Nessas reflexões, falei sobre a identidade religiosa em construção no candomblé. Ano passado, fiquei um tempo, mas saí por sentir falta de laços afetivos e por ter sido apresentado a uma outra casa onde alguns amigos participavam. A experiência na casa foi terrível.

Este ano, retornei ao início. Tem sido muito bom. Estou construindo amizades, gente que vive a humanidade numa boa. Aliás, é isso que aprendo com o candomblé, com a filosofia iorubá: ser ser humano é viver coletivamente, sem julgamentos, sem ninguém para ficar olhando teus pecados, talvez até pecando (na concepção cristã) juntos.

Eu disse, inclusive, que no sábado seguinte ia receber em casa alguns irmãos amigos do terreiro para comer, beber e se divertir.

Viver a humanidade.

Viver a potencialidade.

Coisas que, o psicanalista trouxe, os ressentidos não conseguem. Vivem numa dimensão superior e não admitem que os outros vivam sua humanidade.

Ele citou Nietzsche algumas vezes na conversa. E tudo fez sentido.

Fez sentido para mim toda essa vitamina religiosa que nutre meu ser, mesmo que eu tenha cuidado, algumas vezes, com os ingredientes que vou liquidificar.

É sobre isso, e está tudo bem.

*Crônica escrita em Cidade da Parahyba, 12 de dezembro de 2024, dia de Nossa Senhora de Guadalupe, quinta-feira de meu pai Oxossi

 

**Joel Martins Cavalcante é professor de História da rede estadual de ensino da Paraíba, membro da diretoria do SINTEP-PB e CUT-PB e militante dos Direitos Humanos e do Movimento Brasil Popular.

***A opinião contida neste texto não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Paraíba.


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Edição: Cida Alves