O desafio que Valéria nos deixou é poderoso: ser fermento na massa.
Por Joel Martins Cavalvante*
O ano novo de 2025 ainda engatinha, mas será fundamental para a democracia brasileira e para o futuro do país. Lá em Brasília, as expectativas se voltam para Hugo Motta, de Patos. Herdeiro de uma linhagem que remonta à ocupação holandesa no Nordeste no século XVII, o paraibano deve assumir a presidência da Câmara dos Deputados. Que seja melhor que Arthur Lira, o alagoano que tem dominado o orçamento como se fosse um primeiro-ministro e feito imposições e chantagens ao governo Lula.
Aliás, no Brasil, a gente já anda vivenciando um parlamentarismo disfarçado. O orçamento, que deveria ser responsabilidade do Executivo, vai parar nas mãos de deputados que enviam emendas para os prefeitos, transformadas em moeda de troca para garantir apoio político. O voto de cabresto não tinha acabado? Doce ilusão. Mas deixemos Brasília e sua política institucional para outra hora.
Quero falar sobre o último dia 8 de janeiro. Data simbólica, dois anos após a tentativa golpista que feriu nossa democracia. Estive no Armazém do Campo, no Castelo Branco (e que nome indigesto esse, não?), aqui em João Pessoa, para uma roda de conversa sobre democracia e soberania. O evento foi organizado pelo MST, Brasil de Fato e o Memorial das Ligas Camponesas. Entre tantas vozes presentes, duas se destacaram: o procurador federal José Godoy e a escritora e freira católica Maria Valéria Rezende.
A fala de Valéria, em particular, ficou ecoando em mim. Ela revisitou os anos 60, tempos de juventude e efervescência política, quando as reformas de base sonhavam em mudar o Brasil antes de serem esmagadas pelo golpe militar. Como religiosa, Valéria trouxe uma metáfora bíblica para descrever sua atuação naqueles tempos: ser o fermento na massa.
Em Lucas 13:20-21, Jesus compara o Reino de Deus a uma pequena quantidade de fermento que transforma toda a massa. Inspirada por essa ideia, Valéria e seus companheiros não queriam converter o povo, mas viver os valores evangélicos de solidariedade, partilha e fraternidade no cotidiano. Era sobre transformação concreta, não pregação vazia.
Essa metáfora me lembrou de um relato que ouvi de um diácono numa celebração na paróquia de Nossa Senhora da Conceição, em Alagoinha, minha terra natal. Ele contou sobre um assentamento que ajudou a erguer, com famílias cultivando a terra e vivendo dignamente. Um dia, visitando um senhor, ouviu algo que o marcou: “Diácono, o senhor me deu a terra, mas não me deu Jesus.” O homem havia se convertido a uma igreja evangélica e se afastado da religião católica. Ele disse na pregação que ia parar de fazer política para pregar o evangelho. Para esse religioso, o mais importante era levar a fé ao povo, ao contrário da juventude católica dos ano 1960, que Valéria fazia parte.
Valéria não poupou críticas às igrejas neopentecostais, chamando-as de “empresas de venda de bens simbólicos”. Essas instituições, cada vez mais presentes nos assentamentos, acampamentos, periferias, se preocupam apenas em converter e prometer salvação eterna, deixando de lado as mudanças concretas na vida material. A propósito, é um desafio para nós, de esquerda, fazer uma aproximação com essas forças religiosas também. O lado ruim é que muitas delas estão a serviço do sistema capitalista e reforçam várias opressões que lutamos para destruir como machismo, homofobia, racismo, desigualdades sociais, etc.
O desafio que Valéria nos deixou é poderoso: ser fermento na massa. Misturar-se ao povo, espalhar-se por meio da arte, da cultura, e lutar para transformar as estruturas opressoras do capitalismo. E prometeu voltar daqui a um ano, para ver onde estaremos fermentando; ela disse que vai sobreviver até 2026. A tarefa é para que sejamos fermento, aqueles que fazem crescer o pão da justiça, da igualdade e da democracia.
*Joel Martins Cavalcante é professor de História da rede estadual de ensino da Paraíba, membro da diretoria do SINTEP-PB e CUT-PB e militante dos Direitos Humanos e do Movimento Brasil Popular.
**A opinião contida neste texto não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Paraíba.
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Edição: Heloisa de Sousa