DIREITO À MORADIA E REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
Há pouco mais de um mês, a cidade de João Pessoa se encontrou compadecida com uma injustiça ocorrida na Praia do Sol. Em um terreno abandonado na localidade, Dona Maria* havia estabelecido sua moradia e ali permaneceu por cerca de seis anos. Até que, no dia 12 de outubro de 2020, foi abordada na sua casa por um homem que se apresentou enquanto Policial Militar. O homem estava sem farda e sem qualquer outra forma de identificação e comunicou à moradora que o objetivo da sua “visita” era expulsá-la daquele terreno, por ordem de seu pai, um advogado que morava naquela mesma rua.
Diante da negativa da moradora em deixar a sua residência, o policial à paisana convocou cinco viaturas da Polícia Militar da Paraíba que não possuíam o adesivo de identificação, trazendo policiais igualmente sem identificação na farda. Naquela ocasião, Dona Maria foi humilhada, ameaçada e agredida verbalmente pelos agentes policiais: eles xingaram a moradora de “velha safada”, “velha sem vergonha”, perguntaram se ela não tinha vergonha de entrar no terreno dos outros e ameaçaram: caso ela não saísse, apareceriam à noite e a matariam sem ninguém ver.
Distante de ser um evento isolado, casos como esse se repetem diariamente no Brasil, na Paraíba e em João Pessoa, já que permanece sem qualquer solução a situação de desigualdade entre as milhares de pessoas que não têm acesso ao direito à moradia e vivem como trabalhadores sem teto, e a enorme extensão de terras e imóveis que não cumprem qualquer função social nas mãos de grandes proprietários
Felizmente, na situação ora relatada, as ameaças não alcançaram seu objetivo, pois militantes do Movimento de Trabalhadores/as por Direitos (MTD), que tem, entre suas lutas, a garantia do direito à moradia digna, tomaram conhecimento e enfrentaram os agressores. Logo o caso tomou proporções políticas e midiáticas, envolvendo o Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública da União (DPU) e, também, o ouvidor da Polícia Militar da Paraíba (PMPB).
O QUE É O DIREITO À MORADIA DIGNA?
O direito à moradia é reconhecido pela Constituição Federal em seu artigo 6º, bem como por diversos tratados internacionais assinados pelo Brasil. É o direito a um lugar adequado e digno para abrigo permanente da família, que ofereça proteção, intimidade e privacidade. A Constituição Federal aponta a responsabilidade do Poder Público para promover programas de construção de moradia e melhorar as condições habitacionais da população, no entanto muito pouco tem sido feito pelos agentes públicos. Em razão dessa omissão, muitas pessoas são privadas do direito à moradia – como aconteceu com Dona Maria na Praia do Sol –, o que acaba gerando a formação de ocupações irregulares em terrenos abandonados.
O QUE SÃO OCUPAÇÕES IRREGULARES?
As ocupações irregulares são fruto do processo de urbanização acelerado e desordenado que tem marcado o crescimento das grandes cidades nas últimas décadas. Geralmente, as ocupações irregulares estão associadas à população de baixa renda que ficou excluída, por negligência do Estado em viabilizar o acesso à terra.
VIVO EM UMA OCUPAÇÃO IRREGULAR, O QUE POSSO FAZER PARA REGULARIZAR MINHA SITUAÇÃO?
A chamada “regularização fundiária” é a forma de transformar uma moradia irregular em regular, registrada no Cartório de Registro de Imóveis, e adequada, com serviços de água, esgoto, ruas pavimentadas, iluminação e limpeza públicas, em locais com acesso a escolas, hospitais, praças e outros equipamentos públicos que melhorem a qualidade de vida das pessoas.
Assim, a regularização pode ocorrer de diversas formas a depender da sua situação específica. Para saber qual o instrumento adequado para regularizar a posse é fundamental verificar quem é o proprietário do imóvel, em especial se a área em que se localiza a moradia é particular ou pública. Para isso, vá ao Cartório de Registro de Imóveis mais próximo do imóvel e peça a matrícula desse, pelo endereço.
Dependendo do tempo de ocupação e características da área, por exemplo, pode ser possível alegar “usucapião” ou “concessão de uso especial”, instrumentos jurídicos que possibilitam que você permaneça no imóvel. Caso você não tenha os requisitos necessários para regularizar sua situação nesse imóvel, pode ser tentado um acordo com o proprietário para que você e sua família consigam um tempo razoável para deixar o imóvel, por exemplo.
O primeiro passo, nesses casos, é sempre procurar um defensor público (gratuito) ou um advogado particular para orientá-lo sobre sua situação.
E SE QUISEREM ME EXPULSAR DA MINHA CASA, O QUE POSSO FAZER?
No caso da moradora da Praia do Sol, um advogado, apontado como pai do primeiro policial que apareceu ameaçando a moradora, é acusado de querer para si os terrenos da região, já tendo atuado de forma semelhante e ilegal contra outros moradores da praia.
Nesses casos, independentemente de você ter feito ou não a regularização da sua posse, não pode ser retirado de sua casa sem ter direito de se defender. A Lei prevê que se deve buscar uma solução que privilegie o direito à moradia.
A retirada de área em que vivem as pessoas é sempre medida drástica que só deve acontecer quando não houver outra forma de manter as pessoas no local onde moram; por exemplo, quando existe risco à vida ou à saúde das pessoas. Se a remoção for a única alternativa, é importante que os direitos dos moradores sejam respeitados. Ela não pode ser feita com uso de força física ou violência e deve ocorrer notificação por escrito antes, com prazo razoável para eventual desocupação e sempre com estratégias para incluir os ocupantes em programas habitacionais.
No caso de Dona Maria, o que vimos foi a atuação ilegal de “milícias”, isto é, o uso do aparato de violência estatal para atingir fins privados. A prática de milícias é muito velha na sociedade brasileira. É a verdadeira velha safada dessa história, inclusive. O caso da Praia do Sol é típico exemplo de prática desses grupos: a expulsão violenta de diversas famílias de suas moradias, sem ordem judicial, sem direito de defesa dessas pessoas, apenas para garantir o interesse de um particular que deseja a posse ilegal do terreno.
As milícias costumavam ser operadas por militares; atualmente, também particulares fazem parte dessa organização. As atividades desses grupos são organizadas e cotidianas. Eles controlam comunidades periféricas e fazem cobranças de taxas para além da carga tributária pública; também controlam e garantem o monopólio do comércio da região, entre outras práticas mais comuns. Infelizmente, organizações criminosas deste estilo vêm ganhando mais poder, inclusive conseguiram eleger um Presidente da República escancaradamente atrelado a elas. Diante desse cenário, o fortalecimento da nossa democracia e do nosso sistema de direitos depende também do enfrentamento a essas práticas e organizações ilegais que oprimem e matam trabalhadores e trabalhadoras para atender aos interesses privados de grandes proprietários.
No mais, é preciso que a população e os órgãos públicos comprometidos com a efetivação da justiça – como o Ministério Público e a Defensoria Pública – estejam firmes na defesa dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, particularmente no que se refere à garantia de moradia digna para milhões de brasileiras e brasileiros que ainda vivem na pobreza e sem condições mínimas de habitação.
*Dona Maria é um nome fictício criado pelos autores deste texto para preservar o anonimato e garantir a segurança da verdadeira vítima.
Por Coletivo Reajuste
Edição: Heloisa de Sousa